Cláudia Guimarães, em casa
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Para quem tem um animal é uma tarefa quase que impossível imaginar como alguém pode abandonar um “serumaninho” nas ruas, sem pensar no estresse e sofrimento que esse pet passará. Com foco nisso, ao longo desse mês, é realizada a campanha Dezembro Verde, que faz um apelo para o combate ao abandono e aos maus-tratos de animais. Um dos principais objetivos da iniciativa é estimular a guarda responsável dos animais de estimação.
Conversamos sobre a temática com a médica-veterinária, graduada pela Faculdade Pio Décimo, fundadora do C.E.D. Brasil, com experiência em Captura, Esterilização e Devolução de felinos desde 2011, responsável pela tradução e disseminação de materiais educativos de C.E.D. no Brasil e autora do 1º livro brasileiro de C.E.D., Otávia Augusta de Mello.
A profissional nos revela que a maioria das pessoas adquire um animal por impulso, seja por compra ou adoção, raramente fazendo um planejamento em termos de custos necessários para manter um pet (alimentação de qualidade, atendimento veterinário de rotina, castração, vacinas, cuidados geriátricos para o pet idoso ou com alguma doença crônica, etc.), além de outros fatores importantes como: relacionamentos familiares, viagens, mudanças de casa ou país. “As pessoas esquecem que aquele animal é um ser vivo, com sentimentos, que poderá viver entre 10 a 15 anos e que deve ser considerado como qualquer outro membro da família”, salienta.
Segundo ela, a Covid-19 causou um impacto social e econômico profundo em todo o planeta e, por isso, foram frequentes os casos de cães e gatos abandonados, principalmente quando seus tutores faleceram em decorrência da doença e os familiares optaram por não mais cuidar dos animais de estimação.
Impactos na saúde do animal e na Saúde Pública
Otávia explica que a perda de um tutor e de seu lar pode trazer aos animais um sentimento de luto semelhante aos dos seres humanos. “É uma ruptura muito profunda com a realidade daquele cão ou gato que passou vários anos com uma rotina estabelecida naquele lar e os vínculos afetivos criados com aquelas pessoas. Os animais podem apresentar sintomas de depressão, assim como nós: apatia, anorexia, distúrbios de sono e baixa de imunidade que podem ocasionar outras doenças. A situação é agravada se o pet acaba em um abrigo, sendo forçado a dividir seu espaço com outros animais desconhecidos e perdendo totalmente seus referenciais olfativos, que são muito importantes, principalmente para os gatos”, menciona.
De acordo com a veterinária, estes distúrbios de comportamento ou de saúde, por conta do estresse do abandono, aumentam a dificuldade da recolocação destes animais para um novo lar e podem, até mesmo, abreviar a vida deles. “Há, ainda, um grande preconceito e desinformação quanto aos animais adultos e idosos que geralmente são os últimos a serem escolhidos nas filas de adoção. Cães e gatos nessas faixas etárias são ótimos companheiros, principalmente por já terem toda a sua personalidade definida”, argumenta.
Otávia indica que animais abandonados em situação de rua podem ser vítimas de diversos tipos de doenças, desde a desnutrição, até parasitas externos e internos. “Também estão mais susceptíveis a serem vítimas de zoonoses, como a Raiva e Esporotricose (sabe-se que gatos machos não castrados com livre acesso à rua ou abandonados são os principais acometidos pela Esporotricose). O risco de agravos, como mordeduras e arranhaduras, além de acidentes, como atropelamentos, também é aumentado em locais com grande número de animais nas ruas”, avalia.
A profissional menciona dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), que apontam que, no Brasil, existem cerca de 30 milhões de animais abandonados, sendo que 10 milhões são gatos e 20 milhões são cachorros. “No entanto, acredito que estes dados são defasados, principalmente quando pensamos em felinos de colônia, muitos deles ferais ou ariscos, que evitam a presença humana e podem se agrupar em centenas de indivíduos ao se estabelecerem em territórios ricos em recursos (água, comida e abrigo)”, observa.
Muitos casos de abandono, na visão de Otávia, se dão por falta de campanhas de conscientização sobre o tema em nosso País. “Muitas pessoas não pensam nos custos e nos cuidados que aquele animal irá necessitar por toda a sua vida, principalmente ao se tornar idoso. Somente amor não é o suficiente. Cães e gatos de estimação precisam de alimento adequado, vacinas especificas para sua espécie, necessitam de castração para evitar doenças do trato reprodutivo como tumores de mama, piometra ou tumores de testículo e hérnia perianal nos machos, além de check-ups veterinários de rotina e de um lar seguro”, enumera a profissional que insere: “O abandono de animais afeta negativamente toda a sociedade e, principalmente, pode causar danos irreversíveis para o animal vítima do abandono”.
Otávia lista à equipe da C&G VF algumas medidas que ajudariam na diminuição do abandono:
- Campanhas de conscientização permanentes, além de punições mais efetivas para quem abandona ou maltrata (não somente pagamento de multas ou cestas básicas) e um sistema de monitoramento mais amplo nos municípios para coibir o abandono.
- Registro obrigatório dos animais e seus tutores por um banco de dados municipal (por microchipagem) e pagamento de uma taxa anual para a manutenção deste registro, como já existe em outros países. “Por exemplo, na cidade de Toronto, os moradores que têm um animal de estimação devem registrá-los na Prefeitura. Os cães e gatos recebem uma placa de identificação e microchip com um número de registro que deve ser renovado anualmente através do pagamento de uma taxa. Tutores de cães e gatos castrados pagam um valor menor (como uma forma de incentivar a esterilização) e tutores de cães de trabalho, como cães guias, recebem isenção da taxa. Este registro também é uma ferramenta importante no caso de fuga do animal, já que pelos dados da placa de identificação ou microchip, ele pode ser rapidamente devolvido a sua família. Os valores adquiridos pelo pagamento dessa taxa são revertidos para cuidados com os animais residentes nos abrigos da cidade” cita.
- No caso de famílias carentes, políticas públicas que facilitem o acesso a essas pessoas a serviços veterinários e descontos em produtos como ração também seriam importantes para evitar o abandono de animais e oferecer uma vida digna para toda essa família multiespécie. “O médico-veterinário possui importância fundamental para educar a população quanto à guarda responsável e cuidados adequados com os animais de estimação, além de diminuição de casos de zoonoses, sendo indispensável que estes profissionais sejam sempre inseridos em políticas públicas visando a Saúde Única”, frisa.
Abandono é crime
A veterinária lembra que o abandono de animais é um dos crimes inclusos na Lei 9.605/98, artigo 32, assim como outros atos de violência e abuso contra animais domésticos ou silvestres. É possível denunciar o abandono de animais: no site do Ministério Público ou ouvidorias estaduais; Polícia Militar, em caso de risco imediato ao animal; delegacias de polícia, pelo registro de Boletim de Ocorrência; delegacias especializadas na proteção animal ou secretarias de bem estar animal disponíveis no município.
“A Lei Sansão, de 2020, aumentou a pena para maus-tratos a cães e gatos de 2 a 5 anos de prisão, mas ainda não conseguimos testemunhar um impacto positivo realmente significativo nesta problemática. O abandono é um crime covarde, muitas vezes, silencioso, sem pistas e sem testemunhas”, lamenta.
Na visão de Otávia, as pessoas raramente lembram sobre como um grande número de animais abandonados nas ruas também causa um impacto importante para protetores e ONGs que lidam com essa problemática. “Todos estão mentalmente sobrecarregados, com dívidas e, muitas vezes, esses abrigos, privados ou públicos, se tornam o ultimo lar destes cães ou gatos”, declara.
A Captura, Esterilização e Devolução (C.E.D.) é uma proposta de manejo populacional para gatos de vida livre, principalmente gatos ferais ou ariscos que não permitem a aproximação humana. “Gatos submetidos a C.E.D. se tornam animais mais saudáveis, silenciosos (não causando incômodos para seus vizinhos humanos) e é possível fazer uma barreira importante contra zoonoses. Os gatos são vacinados contra a Raiva e, por estarem castrados e com a diminuição da necessidade de patrulhar território, são menos susceptíveis a atropelamentos e doenças pelo contato com outros felinos, como a Imunodeficiencia Felina (FIV) e a esporotricose”, explica.
No Brasil, existe o C.E.D. Brasil (@cedbrasil), uma iniciativa educacional para instruir as pessoas sobre a prática e o bem-estar dos gatos de colônia. Em Julho de 2021, foi realizado o 4º Encontro Nacional e, em Setembro, foi lançado o primeiro livro brasileiro sobre C.E.D.. “C.E.D. NA COLÔNIA INICIAL: uma experiência de Captura, Esterilização e Devolução de felinos em São Luís, Maranhão, Brasil”. “A obra relata uma intervenção de C.E.D. entre os anos de 2011 a 2015, em uma colônia urbana de 126 indivíduos na capital do Maranhão, trazendo todo o passo a passo para um manejo populacional ético e bem sucedido, além de uma ferramenta estatística para mensurar os impactos positivos das ações de C.E.D. pelo número de filhotes evitados. O livro está disponível em formato e-book na plataforma Amazon”, divulga.
Por fim, Otávia opina que o conjunto de ações de conscientização, mostrando a importância do planejamento, educação quanto à guarda responsável, políticas públicas de controle populacional em grande escala, registro e identificação dos pets e seus tutores e punições severas para quem abandona são as melhores possibilidades para que, um dia, não exista essa quantidade exorbitante de animais abandonados e sofrendo pelas ruas.