Cláudia Guimarães, em casa
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A raiva é uma enfermidade que ocorre de maneira endêmica em diversos países. Suas formas epidemiológicas obedecem a uma divisão didática, sendo que as mais conhecidas são a raiva urbana e a raiva rural. Nossa entrevistada neste texto para explicar essas classificações e outros assuntos sobre a zoonose é a médica-veterinária docente de Doenças Infecciosas, no Centro Universitário em Itu e Salto SP (CEUNSP-Salto), do Grupo Cruzeiro do Sul Educacional, Vivian Lindmayer Cisi.
“Na raiva urbana, o vírus é mantido, primariamente, na população canina, porém, outros animais domésticos urbanos são, frequentemente, infectados. Por sua vez, no ciclo rural, a espécie de morcego Desmodus rotundus, vulgarmente conhecido como morcego-vampiro-comum, é o principal reservatório do vírus rábico. A raiva rural ocasiona grandes perdas à Economia Pecuária e emergente problema para a Saúde Pública em face dos seres humanos vitimados”, alerta.
Para relembrar, a profissional explica que a raiva é uma antropozoonose causada por um Lyssavirus, que provoca uma encefalomielite aguda e falta em mamíferos, incluindo o ser humano. “Segundo a Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), a raiva mata uma pessoa a cada 9 minutos no mundo, sendo quase metade delas é criança. Em relação aos animais, cerca de 5 mil casos de raiva animal são relatados anualmente ao Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), nos Estados Unidos”, menciona.
Vivian ainda cita que, segundo dados atualizados em dezembro de 2020, pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS), entre 2010 e 2020, foram registrados 39 casos de raiva humana. “Já o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), que recebe as notificações de raiva animal, informa que, de 2009 a 2019, foram notificados 49.562 casos em nove espécies, como bovinos, equídeos, cães e gatos, entre outros”, salienta.
Como ocorre a propagação da doença?
A transmissão da raiva, segundo Vivian, ocorre quando o vírus rábico existente na saliva do animal infectado entra no organismo, por meio da pele ou de mucosas, por mordedura, arranhadura ou lambedura, não existindo necessariamente agressão. A atenção especial deve ser em relação aos morcegos, que são considerados os principais reservatórios silvestres do vírus.
“De uma forma geral, o vírus rábico, usualmente de transmissão pelo contato direto, é pouco resistente aos agentes químicos, físicos e às condições ambientais. De acordo com a literatura científica, na dependência das condições ambientais adversas, o vírus rábico pode manter sua infecciosidade por períodos relativamente longos, sendo inativado, naturalmente, pelo processo de autólise. A putrefação destrói o vírus lentamente, aproximadamente, em 14 dias, porém, em carcaças enterradas em terrenos argilosos e secos a uma profundidade de um metro, as partículas virais permaneceram infecciosas por até cinco semanas”, explica a veterinária.
Em relação aos pets, a docente salienta que a vacinação destes, que são animais susceptíveis, consiste na principal medida profilática, ou seja, de prevenção da doença. “A vacinação antirrábica em cães e gatos é obrigatória por lei e deve ser aplicada todo ano. Dessa forma, o animal vacinado irá manter títulos de anticorpos protetores contra o vírus. No entanto, podem ocorrer falhas vacinais. Por exemplo, a vacina, quando aplicada por pessoas sem habilidades, em animais debilitados (o médico-veterinário que irá avaliar cada caso) ou quando mantida em temperaturas inadequadas, pode perder sua eficácia. Por isso, os tutores devem vacinar seus animais apenas por meio de serviços médicos veterinários e/ou campanhas de vacinação realizadas pelo governo”, orienta.
Vale lembrar que, devido às medidas de isolamento social adotadas durante a pandemia de Covid-19, as campanhas de vacinação antirrábicas para animais de companhia foram suspensas. “Algumas prefeituras disponibilizaram postos fixos para vacinação, outras também disponibilizaram postos volantes para facilitar a imunização dos animais. O Ministério da Saúde recomenda que a vacinação antirrábica de cães e gatos deve ser realizada de acordo com o preconizado para cada região, de acordo com a situação epidemiológica de cada local”, discorre Vivian.
Existem, segundo a veterinária, diversas estratégias para tal finalidade, como campanhas (que, no momento, estão suspensas); rotina, que é a vacinação de forma permanente e constante durante todo o ano, com horário e período de funcionamento definidos (a busca pela vacinação se dá de forma espontânea pelo tutor); e, também, bloqueio de foco. “Esse seria a vacinação casa a casa, desencadeada após diagnóstico de animais positivos para a raiva”, esclarece.
Além de manter a vacinação do pet atualizada, Vivian declara que o tutor pode reduzir a possibilidade de exposição à raiva com os seguintes cuidados: não permitir que seus animais domésticos façam passeios sozinhos (castrar os animais diminui o comportamento de fuga); não deixar lixo ou alimento de cães do lado de fora de casa, para não atrair outros animais; lembrar sempre que animais selvagens não devem ser tratados como pets. “Além de ilegal, os animais silvestres podem ser potenciais animais infectados e que podem trazer riscos para os seres que o cercam”, destaca.
Perfil epidemiológico da infecção
Vivian sinaliza, que, recentemente, a comissão de saúde pública veterinária, do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado da Paraíba (CRMV-PB) emitiu uma nota de esclarecimento sobre a raiva humana, deixando clara a mudança no perfil epidemiológico da infecção. “De acordo com o CRMV-PB (2020), a redução nos casos de raiva humana e em animais de companhia deu-se, principalmente, pela eficácia das campanhas de vacinação de pets. No entanto, casos de raiva humana, transmitidos por animais no ciclo silvestre, chamaram atenção e mostraram uma mudança no perfil epidemiológico da infecção”, revela.
A professora universitária ainda cita uma pesquisa publicada em 2019, que estudou 188 casos de raiva humana, entre os anos de 2000 e 2017, que mostra que houve predominância de casos de raiva humana transmitidos por morcegos. “Sabe-se que um dos fatores que predispõe a raiva transmitida por morcegos é o desmatamento ou reflorestamento. Os morcegos sofrem com o desflorestamento, que reduz a disponibilidade de abrigos naturais, causando grande impacto na sua densidade e distribuição. O último surto de raiva humana em terras brasileiras se deu em comunidades ribeirinhas da região do Marajó, na foz do rio Amazonas. Nas proximidades, houve o desmatamento pela ação de madeireiras, o que fez ambientalistas apontarem os impactos ambientais como uma das causas da situação. Pesquisadores afirmam que a retirada de árvores altas nas matas destrói a moradia de colônias de morcegos e afasta animais que seriam suas presas, o que pode levá-los a se aproximar de pessoas e criações animais”, relata.
Ou seja, os morcegos também devem ser vistos como vítimas do mundo atual e não culpados pelos casos de raiva. De acordo com a profissional, eles pertencem ao segundo grupo mais diverso entre os mamíferos: a ordem Chiroptera. Segundo ela, existem cerca de 1.200 espécies diferentes de morcegos no mundo, sendo apenas três consideradas hematófagas, ou seja, que, realmente, se alimentam de sangue.
“No Brasil, podem ser encontradas 178 espécies, incluindo as três. Assim como todos os seres vivos, os morcegos têm o seu papel na manutenção e equilíbrio dos ecossistemas. A maioria das espécies de morcegos que existem no Brasil é frugívora (se alimentam de frutos), insetívora (se alimentam de insetos), as quais predam com muita eficiência pragas urbanas e agrícolas, ou nectarívora (se alimentam de néctar e pólen). Desta forma, realizam a polinização de diversas espécies de flores. Eles são animais importantes para o meio ambiente e não devem ser perturbados, perseguidos ou mortos. Assim como qualquer animal silvestre brasileiro, são protegidos por lei e merecem admiração”, finaliza.