Cláudia Guimarães, em casa
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Quantos são – ou, ao menos, deveriam ser – os tratamentos que animais domesticados recebem por ano junto a seus tutores e médicos-veterinários? São as vacinas, medicamentos, consultas de rotina, exames, entre outros cuidados essenciais, que proporcionam saúde aos pets. Mas e quanto àqueles que não vivem em contato com o ser humano, também não merecem um olhar de atenção, uma demonstração de cuidado? A resposta é sim!
O gestor ambiental, especialista em tratamento ecologicamente correto para ambientes com presença de gatos domésticos de vida livre, idealizador da ONG Bicho Brother e voluntário do Centro de Reabilitação de Animais Silvestres Núcleo da Floresta, Eduardo Pedroso, nos conta um episódio recente, que mereceu atenção de alguns profissionais.
Ele narra que um morador da cidade de Mairinque (SP), o Jefferson Santos Barbosa, amante e protetor de animais, encontrou uma gata quase desfalecida na beira de uma estrada. “Colocou o animal no carro e, uma vez em casa, ligou para o seu irmão que é vereador na cidade. O vereador Jackson acionou o Departamento de Meio Ambiente, onde é diretor o biólogo Carlos Henrique Paulino e, também, a Guarda Municipal da cidade. No mesmo dia em que esses órgãos estiveram na residência do Jefferson, a gata foi entregue para o Rafael Mana e a Bárbara Pilão, respectivamente o biólogo e a médica-veterinária responsáveis pelo Núcleo da Floresta”, relembra.
Nos dias seguintes a esses fatos, Pedroso expõe que circularam notícias de que a gata havia sido atacada por cães, o que, na verdade, não aconteceu. “Na realidade, ela comeu lixo e ficou muito intoxicada. Em seu estômago havia tecido de fralda. O exame de ultrassom apontou um objeto estranho e o Núcleo e a ONG Bicho Brother buscaram os serviços de endoscopia da empresa Pet Por Dentro. O procedimento executado pelo Dr. Walter Figueira ajudou muito a Emanuelle (a gata foi batizada com esse nome) a se recuperar”, declara.
O biólogo especialista em Manejo de Animais Silvestres e diretor do Núcleo da Floresta, Rafael Mana, aponta que o animal apresentava quadro de prostração, desidratação, diarreia e anemia, o que possibilitou um resgate tranquilo pelos servidores municipais. “Os procedimentos veterinários iniciais envolveram hidratação e administração de antibiótico e anti-inflamatório. O animal ficou em observação e foram realizados os exames de sangue e fezes. Após a constatação de material plástico nas fezes, foi realizado exame de ultrassonografia, que confirmou a suspeita de mais material em seu trato digestório. Como mencionado por Pedroso, foram retirados fragmentos plásticos do estômago do animal, que permitiram identificar que se tratava de fralda humana”, narra.
Mana relata que, após a retirada destes fragmentos, o animal se recuperou rapidamente (confira vídeo da reabilitação de Emanuelle), teve elevado aumento de apetite e absorção adequada de nutrientes, atingindo o peso ideal e score corporal mínimo para que fosse considerada apta à sua reintrodução na natureza. “Todo o processo se deu entre os dias 09 de fevereiro de 2021 a 21 de março, quando foi realizada a soltura em área monitorada pela nossa equipe. Desde então, a monitoramos pelas câmeras-trap (armadilhas fotográficas) instaladas pelas áreas do projeto (confira vídeo da soltura do animal)”, revela Mana e Pedroso complementa: “E foi isso que aconteceu. Está tudo registrado com vídeos e fotos”.
Para o biólogo, o grande desafio, neste caso específico, foi descobrir o motivo de tamanha debilidade, pois o animal não apresentava sinais de ferimentos, traumas ou envenenamento. “Então, redobramos a atenção durante o período de observação até que conseguimos identificar o corpo estranho em suas fezes”, adiciona.
Como destacado pelo profissional, uma equipe multidisciplinar é extremamente importante para avaliação de casos complexos como esse, pois são experiências profissionais pessoais diversificadas, opiniões e pontos de vista diversos, que convergem para uma solução e busca de sucesso no tratamento. “Neste caso, os profissionais ligados diretamente ao caso foram três biólogos Especialistas em Animais Silvestres, dois estagiários de Biologia, um estagiário de Medicina Veterinária, uma médica-veterinária responsável (Bárbara A. R. Pilão), uma veterinária (Ultrassonografia), uma veterinária (anestesia), um veterinário (endoscopia), totalizando quatro médicos-veterinários”, elenca.
Características da espécie. A gata resgatada e reabilitada é um gato-do-mato-pequeno (Leopardus Guttulus), uma das 10 espécies de felinos nativos que ocorrem no Brasil. “Tem tamanho e peso parecidos com o do gato doméstico, já sua pelagem é bem diferente. Ocorre nas regiões centro-oeste, sudeste e sul do Brasil, nos biomas Cerrado e Mata Atlântica, com maior frequência nesse último. Sua alimentação consiste, basicamente, de pequenos roedores, lagartos e aves”, descreve Pedroso.
Segundo o gestor ambiental, é um animal considerado vulnerável pela União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) e, também, pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o que significa que restam poucos indivíduos na natureza. “Perda de habitat por conta da expansão urbana, atropelamentos, caça, conflito com criadores de animais de abate e ataque de cães domésticos são os motivos que tornam a espécie vulnerável”, enumera.
Já que essa espécie é considerada ameaçada de extinção, na categoria vulnerável, ou seja, é uma espécie que necessita de atenção especial para sua conservação, preservação e perpetuação, Mana pontua que todos os indivíduos possuem alta representatividade dentro de um processo de reabilitação. “O nicho ecológico utilizado por esta espécie vai muito além do nicho utilizado por gatos domésticos ferais, sendo extremamente importante seu retorno ao ambiente natural, uma vez que é um predador extremamente eficiente e grande controlador de roedores em ambiente natural”, discorre.
Mana considera importante salientar o impacto da expansão urbana no aumento de casos como esse, por meio do desmatamento de áreas verdes, aumento de população nas periferias sem saneamento básico, surgimento de lixões e acúmulo de entulhos nas áreas próximas a cursos d’água e áreas vegetadas, sendo consideradas, pelos animais silvestres, como locais de oferta de alimento. “Esse caso demonstra, exatamente, o estrago que o lixo urbano pode fazer nas populações de animais silvestres”, destaca.
Trabalhos desenvolvidos. O Núcleo da Floresta é um Núcleo de Pesquisa e Extensão em Fauna e Flora, localizado em São Roque (SP) e, desde 2018, também atua como Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS), recebendo os animais silvestres vítimas de atropelamentos, caça, maus tratos, apreensões e filhotes órfãos provindos das cidades da região.
“Todos os animais recebem tratamento veterinário altamente especializado, passam por processos de reabilitação e treinamento e se apresentarem condições, serão devolvidos à Natureza em locais previamente estudados e monitorados. Esses animais são acompanhados para verificação do sucesso de sua reintrodução e em alguns casos, avaliada a necessidade de algum tipo de intervenção”, compartilha Mana.
O Núcleo trabalha com diversas espécies de animais silvestres, incluindo mamíferos, aves, répteis e anfíbios. “Recebemos animais diariamente e cada caso é estudado individualmente”.