Cláudia Guimarães, da redação
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O desejo de quem gosta de cães e gatos é ver todos esses animais nas mesmas condições de conforto, afago e saúde. No entanto, com o número de animais que vivem em situação de rua, por exemplo, sabemos que isso não corresponde à realidade.
Assim, a médica-veterinária e pesquisadora, Evelynne Hildegard Marques de Melo, reforça que nem todo cão ou gato é um pet. “Pet significa ‘meu pequeno domado de estimação’ e vem de uma expressão influenciada pelo francês e pelo latim, onde, ao longo da história, foi sendo empregada nas culturas antigas, dentre os nobres que criavam cães e gatos e outros pequenos animais de estimação. Mas, infelizmente, nem todos os cães e gatos estão na situação de animal de estimação; muitos são encontrados em vida livre, mas que convivem no entorno e à margem da convivência humana, tal como praças, estacionamentos de empresas e de condomínios, campus universitários e ruas”, observa.
Então, ao tentarmos definir cães e gatos comunitários, Evelynne destaca que lembramos de diferenciar o “estar na comunidade” e “ser comunitário/pertencer a comunidade” e isso depende de aceitação. “Mas, de modo geral, os cães e gatos comunitários são aqueles que estão livres na comunidade e não tem um tutor específico, porém, recebem atenção de pessoa ou grupo de pessoas em ambientes públicos de vida livre”, indica.
Porém, sem uma regulamentação/gestão pública, os cuidados estabelecidos com cães e gatos comunitários ficam a cargo do senso comum na maioria das cidades do Brasil, ou seja, do que estiver ao alcance da população civil e isso, segundo Evelynne, depende das compreensões sobre a manutenção dos animais nas comunidades, sobre o manejo, das condições financeiras para oferecer assistência veterinária quando necessitarem, assim como o alimento oferecido e a castração
“Em minha pesquisa de mestrado (que estudei o nível de compreensão das pessoas sobre cuidados básico com cães e gatos), ficou evidenciado que essas pessoas, muitas vezes autodenominadas de ‘protetores’, estabelecem uma atenção aos animais oferecendo-lhes, principalmente, comida e, algumas vezes, assistência veterinária, como, por exemplo, a castração, vacinas e vermífugos, para aqueles em que a realidade os permite que sejam acessados ou capturados, pois, muitas vezes, o perfil destes animais é o de “cães arredios ou ariscos” e “gatos ferais” por não se permitirem ser tocados, devido ao fato de viverem distantes da realidade domiciliada (em contato íntimo com o homem em residência).
“Contudo, há relatos de cães e gatos que vivem livres nas comunidades e são amistosos. O cuidado/manejo mais necessário é o da castração, porque a plena instituição de todos os cuidados básicos necessários à vida do animal, dificilmente, será ofertada e, desse modo, evitar mais nascimentos é a prioridade. Quando acessamos um cão ou um gato para castrar também primamos pela vacina antirrábica”, expõe.
Como eles são vistos pela Lei?
A médica-veterinária comenta que a legislação brasileira é fragmentada e com atitudes superficiais, ainda, resultado, também, do pouco entendimento dos legisladores acerca do problema. “Uma boa visão sobre o posicionamento governamental brasileiro sobre cães e gatos livres nas cidades é a definição do Ministério da Saúde, quando os consideram que são ‘parte da fauna antrópica existente’. Outra visão política sobre cães e gatos, de modo geral, é a proteção conferida na Lei de crimes ambientais (LEI 9.605). que, inclusive, foi atualizada no quesito punitivo contra maus-tratos por meio da Lei Sansão”, aponta.
Contudo, Evelynne destaca que uma visão interpretativa sobre a atitude governamental mostra um cenário de iniciativas fragmentadas: “Reconhecer que são seres da fauna e punir o cidadão que comete e maus-tratos não é o bastante para garantir nem proteção, nem boa convivência homem-animal e nem equilíbrio sanitário, diga-se de Saúde Única. Isso porque há lacunas a serem preenchidas e que são históricas, tais como prioritariamente a gestão dessa ‘fauna antrópica existente’, que, justamente, se trata de atitudes sustentáveis sobre as permanências desses animais nas comunidades”, pondera.
Para a profissional, o entendimento e a decisão política sobre o significado de cães e gatos comunitários devem ir no sentido de proporcionar que os animais atinjam suas expectativas de vida sem se reproduzir e sob atenção das pessoas nas comunidades onde estão, evitando acumulação e aglomeração em ambientes fechados.
Ambientes de proteção
Ao falar em ambientes de acolhimento para os animais comunitários, segundo Evelynne, estamos falando em abrigos públicos e privados e residências de particulares entre acumulação e lares temporários. “O Brasil tem todos esses modelos, até porque a demanda em lidar com cães e gatos nas cidades está, até hoje, muito concentrada nas mãos da sociedade civil que, ao longo do tempo, vem fazendo ao nível do senso comum, distantes de assessora técnica veterinária e, também, distantes da força política. Estes ambientes seguem sem um rigor legal no País, não há Lei descrevendo as regras de como devem operacionalizar. Diferente de outros países, onde há legislações específicas sobre isso”, revela.
Uma ideia observada é a de organização de rede de acolhimento, onde a finalidade é de não aglomerar, não confinar e não acumular cães e gatos, devendo, a ideia de abrigo, ser com foco em animais vulneráveis (sem condições de vida livre por doença, recuperação cirúrgica de castração ou acidentes) e que passem o mínimo de tempo em ambientes de acolhimento somente para se recuperar de agravos.
“Uma organização em rede faz com que, sob gestão de prefeituras, juntos, unidades de vigilância em zoonoses, abrigos particulares (quando existirem) e sociedade civil, por meio de ONGs (devidamente registradas com CNPJ) e residências singulares (em lares temporários), possam se comunicar para receber os animais e abrigar até que sejam adotados por terceiros ou devolvidos às suas colônias/ambientes de origem”, insere Evelynne.
A situação ideal, na visão da profissional, quando pensarmos em abrigos, é que sejam ambientes temporários, de passagem e que a sociedade seja instruída a fazer a aceitação sustentável dos cães e gatos nas comunidades até que atinjam suas expectativas de vida castrados. “Porque, ao retirar um animal adulto da vida livre e mantê-lo em abrigos em gaiolas, submetemos os animais ao estresse, ao desencadear de doenças, aumentamos o limiar de contágio de doenças infecciosas e representa alto custo financeiro e baixo bem-estar animal (na maioria dos casos pela precariedade dos locais)”, explica.
Fisicamente, o ambiente de abrigo/acolhimento deve ter espaço suficiente para aos animais expressarem seu comportamento, deve ter alternância em locais cobertos e expostos ao sol, deve ter separação entre espécies (cães separados de gatos inclusive de barulho de latidos), deve ter estrutura de escoamento de esgoto adequado, ser lavado diariamente, ter equipe de pessoas para higiene permanentemente.
Controle de zoonoses
A médica-veterinária destaca que o mesmo Ministério da Saúde que reconhece cães e gatos como parte da fauna antrópica existente, também reconhece a participação de cães e gatos na epidemiologia de zoonoses de importância sanitária. “A lista de zoonoses é extensa e abrange doenças de baixo, médio e alto impacto sanitário. Desde uma sarna ou verminose à leishmaniose e esporotricose, por exemplo”, salienta.
Pensando na Saúde Única e Saúde Pública, Evelynne declara que é essencial partirmos da premissa verdadeira de que estes animais são dependentes do homem para a determinação de seus cuidados básicos e que sozinhos até mantém relativo equilíbrio parasita-hospedeiro, mas, na interação homem-animal, esses são fatores de risco para o adoecimento humano.
“Ou seja, é a sensibilidade humana frente aos cães e gatos sem um lar (uma residência segura para morar) que disparam os gatilhos emocionais de abrigá-los, retirá-los do ambiente de vida livre e levá-los para casa, estabelecendo a falsa sensação de proteção animal, quando, inúmeras vezes, a pessoa que recolhe não dispõe das condições nem financeiras e nem ambientais para custear a permanência destes animais e, muitas vezes, resulta em aglomeração e acumulação”, evidencia.
Estudo sobre o tema
Há alguns anos, a temática políticas públicas com cães e gatos tornou-se linha de pesquisa para Evelynne. Ela conta que, por meio de estudos, principalmente de literatura legislativa internacional, observou que o reconhecimento de cães e gatos comunitários é uma estratégia importante para o manejo populacional destes animais nos centros urbanos.
“Decidi, junto a outros colegas, pesquisar a realidade brasileira, no âmbito político, sobre esse tema e, comparando a outros países, aprofundei o assunto para entender por que o Brasil ainda está atrasado nas iniciativas políticas. Na pesquisa ‘Importância do reconhecimento de cães e gatos comunitários e organização de ambientes de acolhimento, pelo legislativo federal brasileiro como apoio à Saúde Única’, observamos que há fragmentação de iniciativas, pois somente algumas unidades federativas possuem Leis estaduais, e algumas leis abrangem somente cães comunitários e não mencionam as colônias de gatos, outras expressam ‘animais comunitários’, termo amplo que envolve várias espécies o que dificulta o executivo de ações específicas, demonstrando falhas no entendimento ao tema; mas o Brasil é grande e há uma demanda a ser atendida que ainda está fragmentada, sob o ponto de vista de iniciativa política.
A pesquisadora deseja que o estudo contribua para as decisões legislativas. “Uma legislação federal serve para o entendimento coeso nas unidades federativas. Então, as pesquisas têm esse compromisso com a sociedade, que é o de estudar e esclarecer problemas e contribuir com as tomadas de decisões. A publicação dos dados serve de documentação científica para ajudar a entender essa necessidade que o Brasil tem”.
Segundo a profissional, ainda são poucos os médicos-veterinários interessados em políticas públicas e, em sua visão, muito provavelmente, isso se deva à não abordagem da temática nas faculdades. “Poderíamos contribuir mais para a transformação das questões sociais, no entanto, estamos mais direcionados ao mercado pet. São realidades opostas e o País necessita das duas abordagens”, conclui.