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Mês do Orgulho: Veterinários comentam episódios vividos dentro da profissão

Profissionais destacam o dever da sociedade em respeitar a sexualidade de todos
Por Equipe Cães&Gatos
LGBTQIAP+
Por Equipe Cães&Gatos

Cláudia Guimarães, da redação

claudia@ciasullieditores.com.br

Respeitar o profissional, mas, acima de tudo, o indivíduo! É sobre isso o texto que trazemos hoje, para marcar o dia e o mês internacional do Orgulho LGBTQIAP+ e como os médicos-veterinários carregam as lutas e alegrias dentro da profissão.

Um dos nossos entrevistados é o médico-veterinário com atuação em clínica geral e ênfase em Dermatologia e Nutrologia Veterinária, Antônio de Morais Monteiro, que, antes de mais nada, se define como homem cis gay. Quando questionado sobre quando se descobriu, Monteiro traz uma reflexão: “Acredito que todas as pessoas LGBTQIAP+ têm uma percepção de si mesmas desde muito cedo, talvez ainda quando criança, ou pelo menos, já no início da adolescência. Não sabemos bem do que se trata, mas já sabemos que não gostamos de certas coisas que os amiguinhos ditos ‘normais’ (bem entre aspas mesmo) gostam”, menciona.

Ele se recorda que, quando tinha sete anos de idade, um de seus tios estava construindo uma casa e ele, de férias, ajudava na obra, em troca de um dinheirinho que ganhava no fim do dia. “Com o dinheiro, comprei a coleção dos power rangers (febre entre as crianças nos anos 90). Nas minhas brincadeiras, o Ranger Vermelho namorava os outros rangers homens. Então, sim, já era o início da minha percepção de que eu era diferente. Além disso, eu colocava camisetas na cabeça e um arco de cabelo da minha mãe (para simbolizar um microfone desses que se pendura na cabeça e me achava a Sandy. Quando minha mãe perguntava, eu dizia que eu era o Junior, mas que para representá-lo, precisava daquilo, afinal o Junior também tinha cabelo longo”, narra.

O veterinário conta que a primeira pessoa (de alta importância em sua vida) que lhe ouviu dizer “sou gay” foi sua mãe. ‘Coloquei na cabeça que, se eu fosse acolhido pela minha própria mãe, eu conseguiria me resolver com o resto do mundo. Meus pais são separados e meu pai, apesar de todo o respeito e carinho que tenho por ele, nunca foi muito presente. Amo-o, mas verdade seja dita: quem me criou, de fato, foi minha mãe. Então, não me importei muito com a opinião dele. A primeira reação da minha mãe foi dar risada e dizer: ‘Você nunca me enganou… bobo é o filho que pensa que consegue enganar uma mãe. Às vezes, a própria mãe se engana e tenta se sabotar, quando não aceita o fato de ter um filho homossexual, mas mãe sempre sabe… Seja feliz, meu filho… Só tenho medo do mundo. No mais, estou com você. Dê-me apenas um tempo para processar essas informações que nem são assim tão novas’, reprisa.

Também conversamos com a médica-veterinária especializada em Diagnóstico por Imagem, além de criadora de conteúdo na página @vetcaren, Caren Lopes Oliveira, que se descobriu enquanto lésbica durante seu primeiro relacionamento. “Me apaixonei por uma mulher e foi tudo muito novo e, ao mesmo tempo, natural. Comecei a namorar em maio de 2016, no segundo ano da faculdade, eu tinha 21 anos na época. Depois de três meses de namoro, resolvi contar aos meus pais e a notícia não foi bem recebida, até hoje (sete anos depois) eles ignoram o fato, não conversamos sobre. Não acredito que meus familiares precisem ‘me aceitar’. Tem um pronunciamento da atriz transexual, Dominique Jackson, que define bem meu sentimento sobre isso: ‘Eu nunca vou pedir que vocês me respeitem. Eu vou exigir respeito! Vocês não vão dizer que me aceitam, vocês não vão dizer que me toleram. Vocês não têm esse poder! Eu retiro isso de vocês. Vocês vão me respeitar por quem eu sou’. Acredito que a única pessoa que precisa me aceitar sou eu. Entendo a importância de uma rede de apoio e conto com meus amigos e parte da minha família para enfrentar os desafios de ser um membro da comunidade LGBTQIAP+”, assegura.

Da direita para a esquerda: Antonio Monteiro com seu marido e os filhos do casal, que chegaram por meio da adoção (Foto: divulgação)

Trajetória profissional

Monteiro conta que, quando ingressou na faculdade de Medicina Veterinária, se deparou com episódios de preconceito. “Contando as pessoas que tem meu sangue e agregados, na minha família, somos 16 médicos-veterinários (o único que atua na clínica médica sou eu). Tenho um tio médico-veterinário da área da produção animal muito ligado a mim e à minha mãe. Tenho uma gratidão enorme por ele. Fiz meu estágio supervisionado e fiquei dentro da casa dele durante todo o período de estágio, na graduação. Conto este caso, porque, de fato, foi o que mais me marcou. Ao chegar na casa dele, antes do primeiro dia de estágio, ele teve uma conversa comigo que durou uns 40 minutos e umas latas de cerveja e o tema principal foi: ‘onde se ganha o pão, não se come a carne…’ e ‘as pessoas da empresa não precisam saber quem você é’”, compartilha.

A primeira decepção de Monteiro na Veterinária – e até um arrependimento de estagiar com seu tio – começou ali. “Eu esperava tudo de qualquer pessoa de fora, mas de dentro de casa, não. Lembro-me o que disse como se fosse hoje: ‘Sobre o comer a carne, pode ficar tranquilo (eu namorava na época), não pretendo, não vim aqui para isso. Sobre não contar para as pessoas da empresa aquilo que sou, vamos pensar. Sou parcialmente careca e essa é uma característica minha, faz parte de mim. Eu coloco boné na empresa para tentar esconder minha careca? Não. Se venta forte e meu boné é derrubado, a ‘vergonha’ da calvície é maior. Obviamente, não vou ficar falando de sexo perto de pessoas que nem conheço. Mas te garanto que, se alguém me perguntar, não vou mentir a meu respeito, mesmo contra sua vontade”, respondeu, na ocasião, ao seu familiar.

Mas não parou por aí, pouco tempo depois do início no estágio, dois funcionários lhe perguntaram a respeito de sua sexualidade, “Eles diziam ‘pode falar a verdade. Uma semana antes de você chegar, seu tio fez uma reunião conosco e disse que você iria chegar. Disse, também, que você era meio diferente, mas que era gente boa’. Pensei: Um discurso de mais de meia hora me pedindo para que eu não contasse, mas ele mesmo contou e, pior, sem minha autorização. Essa minha característica é algo que diz respeito somente a mim. Eu conto para quem eu quiser, ele não tinha esse direito. E se eu tivesse optado por não contar às pessoas a meu respeito? Na época fiquei bem mal e o restante do meu estágio foi um fiasco, porque daí em diante, qualquer coisa que meu tio me dizia ou qualquer lição que ele tentava me ensinar, era frustrante, pois sabia que ele estava me dando ensinamentos que, talvez, nem ele mesmo seguia à risca (e não estou falando de coisas técnicas)”, afirma.

Mas, hoje, ao lidar com preconceito, Monteiro sempre busca refletir: “O preconceito é dele (a), então, ele é quem precisa lidar com isso e se tratar, não eu. Eu sou o ‘diferente’, mas se ele não sabe lidar bem com a diversidade, não é ali que devo estar. E me afasto. Simplesmente, saio do campo. Deixei de amar aquela pessoa? Não. Mas conviver com pessoas assim é muito para mim. Faz mal, adoece. Então, procurei outros nichos de trabalho e, hoje, encontrei meu lugar.  Sou casado com um homem maravilhoso e temos três filhos lindos que chegaram para nós por meio da adoção”, comemora.

Já com Caren, no segundo ano da faculdade, ela presenciou uma discussão homofóbica no grupo de calouros do WhatsApp. “Não foi direcionada a mim, mas doeu como se fosse. Na época, me posicionei contra, mas não recebi apoio do resto da turma, fui taxada de exagerada. Durante a faculdade, havia olhares preconceituosos e afastamento – principalmente vindo de mulheres heterossexuais. Há quem acredite que mulheres são mais receptivas à comunidade LGBT, mas essa simpatia é direcionada, principalmente, a homens gays, lésbicas são vistas com desprezo”, denuncia.

Durante a residência, após o fim de sua graduação, Caren conta que se sentiu mais à vontade para falar, abertamente, sobre sua sexualidade no ambiente de trabalho. “Em uma dessas ocasiões, ouvi de um colega ‘mas você é assim porque não encontrou o homem certo’ – uma frase extremamente lesbofóbica. Sempre me posiciono publicamente sobre questões de gênero e sexualidade, mesmo assim, em momentos em que sofro lesbofobia, ainda sinto um medo paralisante. É muito difícil e cansativo viver lutando para que a sua existência seja respeitada”, lamenta.

Para a veterinária Caren Oliveira, é urgente que os temas acerca da comunidade LGBT sejam incluídos em eventos da sociedade médico-veterinária
(Foto: divulgação)

Profissão inclusiva?

A médica-veterinária não considera a Medicina Veterinária como uma profissão que acolhe os LGBTQIAP+. “Um exemplo disso foi a primeira live que eu fiz no Instagram na AMAR+VET com o tema: ‘Machismo na Veterinária: vivências lésbicas e transsexuais’. Recebemos inúmeros ataques e ofensas homofóbicas e transfóbicas. Além disso, várias pessoas LGBT relataram, no post de divulgação, terem vivências similares dentro da Medicina Veterinária. As relações médico-veterinárias são um reflexo da nossa sociedade, que é extremamente machista, racista e LGBTfóbica. Um agravante, no nosso caso, é que a sociedade médico-veterinária ignora as questões sociais, acreditando que elas não têm nenhuma relação com a nossa profissão, quando, na verdade, tem uma relação íntima que necessita ser debatida. Fechar os olhos para um problema não faz com que ele desapareça, mas dá forças para que ele cresça sem a imposição de limites”, salienta.

Por sua vez, Antônio Monteiro considera que a clínica veterinária de pequenos animais tolera mais pessoas LGBTQIAP+ do que outras áreas da Medicina Veterinária. “Até pelo fato de essas pessoas optarem mais por este nicho (por conhecer o preconceito existente em alguns outros? Pode ser, mas, realmente, não tenho essa informação de forma concreta. Uma vez, uma colega lésbica apaixonada por cavalos me disse: ‘Amo cavalos, mas ser mulher trabalhando com grandes animais é procurar ser alvo de preconceito, pois já vi cenas horrorosas acontecerem com veterinárias de bovinos e equinos’. Então, acho que a Veterinária fragmenta, sim, não só os LGBTQIAP+, mas outras pessoas pertencentes a outros grupos também”, observa.

Daí a importância de trazermos debates sobre esse e outros temas dentro da profissão. “Falar sobre a dor traz cura. Discutir faz-se necessário. Dizer algo da nossa história a respeito do assunto inspira o leitor e encoraja a quem passa pelas mesmas situações. Publicar o assunto leva o conhecimento dos fatos às autoridades responsáveis para que tomem medidas necessárias para diminuir ou anular (não sou tão otimista, mas…) o preconceito”, argumenta.

Na visão de Caren Oliveira, é urgente que os temas acerca da comunidade LGBT sejam incluídos em eventos da sociedade médico-veterinária para que os estudantes e profissionais pertencentes a essa comunidade não passem mais por situações de violência na profissão como as relatadas acima. “Ou, caso episódios de preconceituosos aconteçam, os membros da nossa comunidade tenham apoio e consigam denunciar o ocorrido. Não é mais aceitável que tenhamos que esconder quem somos para sobreviver ao ambiente de trabalho. É natural conversar com colegas de profissão sobre a sua vida pessoal, sobre seu namorado ou namorada, isso é essencial para um ambiente de trabalho saudável. Imagine se toda vez que, ao dizer o nome do seu parceiro, você receba olhares de nojo e desaprovação, ou seja punido de alguma forma. Falar sobre a comunidade LGBT dentro da Veterinária é garantir segurança e equidade para pessoas LGBTs poderem ser quem são onde quer que estejam”, pondera.

Para fortalecer

Aos médicos-veterinários e à sociedade em geral, Monteiro deixa um recado neste Mês do Orgulho: “Sejam felizes. Você LGBTQIAP+ seja feliz, seja você. Você não LGBTQIAP+ seja feliz, seja você. Você, preconceituoso, trate-se! Para ter tamanho preconceito, deve haver uma ferida não cicatrizada, afinal, gente feliz e, sobretudo, bem resolvida (inclusive, com sua própria sexualidade), não se incomoda com a vida alheia. Médico-veterinário LGBTQIAP+, estudante de Veterinária LGBTQIAP+, encha seu tanque de combustível com todo carbono triste e negativo e transforme-o em força para uma linda decolagem. Sociedade, sejamos mais tolerantes uns com os outros e saibamos respeitar as diferenças. Família, apoie o médico-veterinário que tem em casa, mas primeiro, acolha seu filho LGBTQIAP+. Seu filho é um ser humano com amores, dores, frustrações e alegrias, que se tornou médico-veterinário e não o contrário. Combater a LGBTQIAP+ fobia não é algo apenas para as pessoas que o são. É tarefa para toda uma sociedade consciente da questão”, conclui.

Caren considera válido destacar que, além de LGBTs, muitas pessoas também são negras ou indígenas e vivenciam a intersecção de uma ou mais opressões. “Eu sou uma mulher negra e lésbica e, na maioria das vezes, a minha negritude chega antes nos lugares do que a minha lesbianidade, mas ambas coexistem e são traços importantes de quem eu sou. Uma dificuldade para quem vive essa realidade é encontrar espaços onde você se sente plenamente incluído. No grupo de veterinários pretos, eu sou a lésbica. No grupo de veterinários LGBTs, eu sou a preta. Vivemos sempre em um não-lugar; nossa existência pode ser, muitas vezes, solitária. É difícil manter a saúde mental sem uma rede de apoio, ainda mais quando enfrentamos diversas opressões sociais. Se a Medicina Veterinária é, por si só, um ambiente adoecedor, imagine o peso de ser uma pessoa negra, LGBTQIAP+ e médica-veterinária”, expõe.

Mas, ainda assim, a profissional frisa: “Estudantes e colegas médicos-veterinários: vocês não precisam e nem, se quer, têm o direito de aceitar qualquer coisa relacionada à vida dos outros. Respeitar a todos é uma obrigação”, finaliza.

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