Profissional garante que não existe um esquema vacinal único a cães e gatos
Cláudia Guimarães, da redação
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Em 1798, o médico Edward Jenner desenvolveu, de forma bastante empírica, a vacinação, após uma propagação da varíola na Europa. Os resultados de seus estudos e experiências foram divulgados no tratado “Investigação sobre a causa e os efeitos da varíola vacum”. O feito foi recebido com insegurança por alguns médicos, porém, outros utilizaram a mesma ideia, misturando materiais a fim de alcançar a imunização para outras doenças.
Conforme explica a médica-veterinária Valéria Maria Lara Carregaro, o princípio fundamental da vacinação é a administração de um patógeno morto ou de proteínas desse patógeno, ou ainda um patógeno vivo modificado, com o intuito de desenvolver uma resposta imunológica eficaz. “A memória imunológica é um dos pontos principais quando queremos entender como funciona o esquema vacinal. Tudo que entendemos hoje sobre o tema, deve-se ao conhecimento dessa memória e sua duração”, atesta.
Sobre isso, ela explana que, em cães e gatos, bem como nos seres humanos, a célula B que foi diferenciada e que não morreu após a eliminação do antígeno, continua produzindo anticorpos após o fim da resposta imunológica. “Esse é um tema importante do ponto de vista de imunologia, porque, até hoje, não se compreende bem como as células B são mantidas, porque a ideia é: uma vez que o antígeno que estava presente no organismo foi eliminado, as células da resposta imunológica entram em apoptose. Porém, as células B continuam lá”, discorre.

Todos os pets, independente da região geográficaem que se encontram, devem receber asvacinas essenciais (Foto: reprodução)
Essa memória imunológica é importante, segundo Valéria, porque, por meio dela, é possível determinar a duração mínima da resposta imune vacinal e, consequentemente, administrar três doses iniciais nos filhotes, com intervalo de 21 a 30 dias entre elas, além do reforço após 6 a 12 meses a fim de estimular a memória imunológica. “O principal aspecto relacionado à memória imunológica é, justamente, o fator referente ao patógeno que foi utilizado na vacina. Se for um patógeno que não estimule a resposta imunológica eficientemente, provavelmente, a memória será menor, como ocorre com as vacinas mortas para Leptospirose”, expõe.
A profissional lembra que as vacinas são classificadas, pelo menos, em dois tipos: as essenciais e as não essenciais. Além dessas, atualmente, há as vacinas que não são recomendadas ou mesmo não foram consideradas pelos autores do último Guia de diretrizes sobre vacinação da Associação Mundial de Veterinários de Pequenos Animais (WSAVA, Ontário/Canadá). “As vacinas não recomendadas são aquelas que não existem evidências científicas para justificar o uso, normalmente só são empregadas em alguns lugares, de acordo com o risco do animal contrair a doença ou não. Já as vacinas não consideradas pelo guia são aquelas licenciadas apenas em alguns lugares, por exemplo, para leishmaniose, babesiose canina, giárdia e herpesvírus canino.
Todas as vacinas caninas brasileiras, como revela a veterinária, possuem o coronavírus, mas esse vírus não é recomendado atualmente porque não causa uma doença grave, sendo uma enfermidade de cunho leve e auto limitante. “Também há questionamentos sobre se a vacina realmente induz uma imunidade protetiva e se o coronavírus canino é um patógeno primário. “Para gatos domésticos, a vacina contra coronavírus felino só é indicada para animais com menos de 16 semanas de vida e para gatos sabidamente soronegativos, pois na presença de anticorpos, a vacina poderá ocasionar uma reação autoimune e, consequentemente, sinais clínicos de Peritonite Infecciosa Felina (PIF)”, conta.
Levantamento. Quando a profissional começou a estudar o tema “Mitos e verdades sobre a vacinação em cães e gatos”, enviou, para seus colegas veterinários, a pergunta ‘O que você entende por lenda e realidade dentro da vacinação?’. “Uma das coisas mais ditas foi: ‘Não aguento mais responder isso aos tutores, mas essa é uma questão frequente na clínica: ‘vacinei meu cão e ele ficou doente’”, narra e atesta que essa é uma realidade que ocorre com certa frequência na clínica.

Valéria possui vasta experiência na área deMedicina Veterinária Preventiva eMicrobiologia Aplicada (Foto: C&G VF)
Então, a questão é: por que existe tanto insucesso no sistema vacinal? “O principal responsável por levar falhas vacinais a cães e gatos são os anticorpos maternos, transferidos quando o pet absorve o colostro. Desde 1982, pelo menos, já se sabe que essas proteínas interferem diretamente na resposta vacinal, inclusive, além de interferirem, não são protetoras. “Por conta disso, é um engano pensarmos que muitos animais estarão protegidos nesse momento. Na verdade, esses anticorpos só estão ali para causar problema na vida do veterinário, porque eles não protegem, não deixam o pet responder como deveria e ainda podem desencadear uma série de eventos se o animal tiver contato com vírus”, avalia e relata que esses anticorpos acabam a partir de 8 a 12 semanas pra cães e gatos, mas nem todos os animais estarão zerados no mesmo tempo. “É individual, normalmente, é por volta desse período”, adiciona.
Outro aspecto importante sobre o assunto, levantado pela profissional, é a janela de imunidade, ou seja, o período de tempo em que o filhote pode ser infectado por um vírus de campo e que a vacinação não conseguiu imunizar. “É essencial pensar nisso com os animais de abrigo ou quando um animal será introduzido em um local onde já teve a doença e há um número grande de pets que ele terá contato. Em vacina de vírus vivo modificado com títulos alto e de baixa passagem, a janela de imunidade é abaixo de duas semanas. Já a vacina de vírus vivo modificada com títulos baixos induzem respostas protetivas por volta de dez a 12 semanas. A maioria das vacinas disponível no mercado brasileiro é de vírus vivo modificado com altos títulos e de baixa passagem, então, teoricamente, nossos animais estão protegidos em menos de duas semanas após a vacinação”, aponta.
Falta pesquisa. Valéria admite que há poucas descobertas sobre a imunidade dos gatos. “Estamos, ainda, patinando em tudo que é relacionado ao sistema imune dos felinos, mas, sobre anticorpos maternos, independentemente da vacina utilizada, se é ativa, morta ou vírus vivo modificado, na presença de altos títulos de anticorpos maternos ocorre uma resposta imunológica mais tardia e que, provavelmente, na primeira dose da vacina, o animal estará susceptível à doença, porque os anticorpos maternos são neutralizados pela vacina”, diz.
Para ela, o grande mito sobre vacinação é a ideia fixa de que existe um esquema vacinal único e perfeito. “Não existe. Dependendo do momento, do risco, da condição do animal e do status sócio econômico do tutor, devemos ponderar qual o melhor esquema para aquele animal, para aquela situação e para aquela realidade”, garante.
Hoje, existe, como mencionado pela profissional, uma linha de raciocínio que ainda não é consenso, de que o ideal para obter o esquema vacinal é realizar a sorologia do animal, tanto antes do esquema vacinal primário, como antes das revacinações. “Essa seria a melhor maneira de decidirmos qual o momento certo de indicar a vacina, averiguar se o animal respondeu adequadamente e identificar o momento de realizar uma nova dose de reforço”, opina.
Verdadeiro ou falso? “Administrei a vacina contra parvo e o filhote ficou doente”. Valéria explica que, antigamente, eram comuns casos de reversão à virulência e, hoje, é um evento raro. “Um exemplo é o de cães que, após receberem a vacina de parvovirose, apresentaram gastroenterite. Desenvolveram esse quadro porque estavam incubando o próprio vírus, possuíam outro enteropatógeno associado ou foram submetidos à mudança de dieta brusca. É um mito dizer que essa vacina causa gastroenterite ou parvovirose”, assegura.

O local recomendado para vacinação em felinosé a pata, por conta de possíveis surgimentosde neoplasias (Foto: reprodução)
“Comprei um rottweiler e me falaram que ele pode morrer de parvovirose”. Como declara a profissional, o pet pode vir a óbito por conta da doença mesmo tomando 20 doses da vacina apenas por não ser responsivo. Existe comprovação de várias linhagens genéticas de cães e gatos que não são responsivos à vacina, do mesmo jeito que alguns estudantes de Medicina Veterinária que recebem a imunização contra raiva não respondem. No caso dos cães, não adianta o veterinário prometer um esquema mágico que deixará o animal protegido. Se ele for de uma linhagem que não responde, estará susceptível”, afirma.
“Raça é um fator de risco para parvovirose”. Como indicado por Valéria, não existem comprovações científicas sobre isso, o que existe é uma maior susceptibilidade quando o animal é puro de raça ou quando ele é misto. “Então, qual seria a solução para um cão de raça considerada mais predisponente? Principalmente no rottweiler, constituir a sorologia e mostrar para o tutor que o pet não respondeu à vacina e, assim, terá que ficar um bom tempo isolado, sem ir para uma praça pública ou hotel, porque, talvez, ele não tenha, realmente, imunidade”, alerta e adiciona os dobermans a este grupo.
“Tenho medo de aplicar a vacina para leucemia e raiva em gatos, porque ela dá câncer”. Há possibilidade, de acordo com a especialista, dessas vacinas causarem sarcoma de aplicação, porém, já se sabe que esses animais que possuem sarcoma pós vacina também podem desenvolvê-lo por qualquer aplicação, inclusive após colocação de chip. “Há controvérsias sobre a vacinação como a culpada, principalmente sobre a afirmação de que as vacinas inativadas são causadoras de sarcomas porque contém adjuvantes. No entanto, isso não é comprovado cientificamente. O gatilho para a formação do tumor é a inflamação crônica que a aplicação acaba causando. Por isso, o local recomendado, atualmente, para fazer vacina em felinos, é a pata. Desse modo, caso apareça alguma neoplasia, a amputação do membro é considerada uma opção, uma vez que a retirada do tumor é uma das poucas alternativas de tratamento e aumenta a sobrevida do animal”, orienta.
Considerações essenciais. A profissional defende que não há necessidade de aplicar o mesmo esquema vacinal dos filhotes nos pets mais velhos. “Recomenda-se, no máximo, duas vacinas e, depois, revacinações anuais, não mais do que isso”, salienta. No caso dos felinos, especificamente aqueles que vivem em apartamento, depende do risco: “Se o gato passeia pelo condomínio e tem contato com outros, o tutor deve continuar com o esquema vacinal, anualmente. Mas se o pet é adulto e não sai desde que entrou no apartamento, longe de outros gatos, pode ser imunizado a cada três anos, como o indicado pelo Guia da WSAVA.
O sucesso da vacina, para Valéria, só é possível por meio da ampliação de pesquisas científicas e divulgação de conhecimento básico das principais causas de falhas vacinais e sobre o uso da sorologia para avaliar a resposta imune e, assim, tomar as medidas pertinentes. “Eu concordo que, talvez, a melhor forma de elaborar um esquema vacinal é com o uso da sorologia, tanto para vacinar, quanto para revacinar. Também acredito que temos que vencer os paradigmas por meio de pesquisa, porque se não tivermos respaldo científico, não podemos concluir se é mito ou verdade. Conhecimento técnico é a melhor forma de evitar o que chamamos de mito”, finaliza.