Cláudia Guimarães, em casa
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Agora, já em 2021, o que você leva de 2020? Tantas foram as coisas que tivemos que aprender, adaptar, superar, na vida pessoal e profissional. Esse início de ano deve ser um momento de reflexão, principalmente em relação às nossas atitudes para com o planeta. Nesse contexto, quando o assunto é Saúde Única, o que o ano anterior nos ensinou?
O médico-veterinário residente em Medicina Veterinária do Coletivo, pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde, do Hospital Veterinário da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Lucas Galdioli, lembra que, apesar de o termo “Saúde Única” ter surgido no século 19, nos últimos anos e, excepcionalmente nesse ano de 2020, ganhou notoriedade. “O ano de 2020 nos trouxe o ensinamento da certeza e necessidade de existir uma abordagem integralizada entre saúde animal, humana e ambiental e que muitas vidas seriam salvas se este termo fosse utilizado tempos atrás”, pondera.
Para ele, 2020 ensinou como devemos repensar na forma como vivemos e como as ações antrópicas têm impacto direto na saúde do planeta. “É preciso se preocupar urgentemente com o consumo desenfreado, a destruição recorrente do planeta e as mudanças climáticas. Outro ponto importante que podemos levar é a necessidade de ocorrer inspeção de produtos de origem animal. Dentro desse sistema fiscalizatório, o médico-veterinário tem um papel fundamental em garantir o controle da sanidade animal, humana e ambiental. A quebra dessa cadeia de fiscalização pode ocasionar transmissões de doenças/zoonoses, como a que estamos presenciando, com a atual pandemia, tendo diversos fatores contribuintes”, destaca.

Pesquisadores acreditam que, na possibilidade do surgimento de novas pandemias, há grande chance de ser por meio de vírus que possuam animais como reservatórios naturais(Foto: reprodução)
Também fomos atrás das considerações que o médico-veterinário, coordenador/professor e responsável técnico do curso de Medicina Veterinária, da Escola Superior São Francisco de Assis – ESFA (Santa Teresa, ES), Gabriel Nunes de Sales Correa, tem sobre o ano que passou: “2020 foi bem desafiador em todos os aspectos tangentes à saúde. Hoje, vivenciamos um problema advindo de um ciclo silvestre envolvendo animais (por mais que existam especulações contrárias e uma enxurrada de notícias fantasiosas a respeito dos fatos): o SARS-cov-19, vírus que modificou negativamente todo o planeta, no contexto pandêmico. Nesse caso, coligamos a saúde animal e saúde humana intrinsecamente, deixando clara a importância de referenciarmos o termo Saúde Única a tudo o que vivemos. Profissionais da saúde humana e da saúde animal, unidos, vêm delineando uma série de pesquisas, tanto no desenvolvimento de cura/profilaxia, quanto na compreensão acerca da epidemiologia do SARS-cov-19. E, se as pesquisas transcorressem sozinhas e sem multidisciplinaridade, possivelmente, não haveria o avanço na mesma velocidade que vêm sendo acompanhadas. Sendo assim, o ano de 2020 ratificou a relação constante entre saúde animal e saúde humana, principalmente, associando o meio ambiente, elo comum a todos os seres vivos”, argumenta.
Como mencionado por Galdioli, no mundo, 75% das doenças emergentes têm sua origem associada aos animais e 60% das doenças humanas têm origem zoonótica. Além disso, a cada ano, surgem cinco novas enfermidades em todo o mundo, sendo que três são de origem animal. “Estima-se que as zoonoses causem aproximadamente 2,5 bilhões de casos e 2,7 milhões de mortes. Isso tudo está associado com fatores intrínsecos e extrínsecos relacionados às dinâmicas de transmissão dessas doenças, como a crescente urbanização, as mudanças no ambiente urbano, a exposição a novos patógenos por meio da destruição dos habitats e da biodiversidade, tráfico de animais silvestres e o hábito de consumir esses animais para os mais diferentes fins”, denuncia.
Para Galdioli, é preciso trabalhar na educação em saúde e humanitária da sociedade, junto a estruturas de vigilância à Saúde Única com planejamento, ações multissetoriais e interdisciplinares. “Visto que intervenções em saúde pública bem sucedidas requerem a interação de profissionais em saúde, saúde animal e ambiental”, adiciona.

Pandemia auxiliou no reconhecimento, não somente do papel do médico-veterinário, mas de diversos profissionais da saúde (Foto: reprodução)
Papel do veterinário na sociedade. A importância da atuação do médico-veterinário dentro do conceito de Saúde Única é indiscutível, na visão de Galdioli. “Porém, ainda hoje, o médico-veterinário tem pouca visibilidade e conhecimento pelos outros profissionais da saúde e gestores públicos com relação às suas funções no que tange à Saúde Única. Após essa pandemia, é visto com olhar prático a atuação deste profissional junto aos demais profissionais que atuam na área da saúde nas ações visando à Saúde Única e, principalmente, como uma só saúde se torna fundamental no combate à pandemia da doença”, relata.
A exemplo disso, ele menciona a ação estratégica do Ministério da Saúde com o “O Brasil Conta Comigo – Profissionais da Saúde”, em que, por meio da Portaria nº 639/2020, determinou o cadastramento dos profissionais da área de saúde incluindo a Medicina Veterinária dentro do rol das profissões. “É importante lembrar que a Medicina Veterinária foi reconhecida no Brasil como profissão da área da saúde em 1998, conforme a Resolução nº 287 do Conselho Nacional de Saúde (CNS)”, relembra.
Diante desse cenário, ele acredita, sim, que essa pandemia auxiliou no reconhecimento, não somente do papel do médico-veterinário, mas de diversos profissionais da saúde e, principalmente, na necessidade de uma visão integrada de uma só saúde, com o entendimento de como humanos e animais interagem ecologicamente em um ambiente e que qualquer alteração nesta relação pode provocar desequilíbrios e, consequentemente, a propagação de doenças. “A abordagem Saúde Única deve ser colaborativa, multidisciplinar e multissetorial para garantirmos ações efetivas de saúde para todos”, observa.
Correa, por sua vez, acredita que já há alguns anos o papel social do médico-veterinário vem ganhando mais robustez, já que modificações climáticas favorecem, historicamente, emergência ou re-emergência de doenças zoonóticas (ou seja, que passam de animais para seres humanos). “A exemplo da febre amarela, raiva, Ebola (ainda não detectada no Brasil), Zika e Chikungunya. E, compreendendo a circulação de agentes infecciosos em animais, bem como, a descrição do ciclo biológico, infere na possibilidade de erradicação, controle e prevenção de uma série de doenças. É importante ressaltar que alguns pesquisadores acreditam que, na possibilidade do surgimento de novas pandemias, há grande chance de ser por meio de vírus que possuam animais como reservatórios naturais”, alerta.

Se as pesquisas estivessem sendo elaboradas sem uma equipe multidisciplinar, possivelmente, não haveria o avanço na mesma velocidade em que vemos(Foto: reprodução)
O que esperar de 2021? Galdioli deseja que, neste novo ano e nos próximos, entendamos que a Saúde Única, que integra os conhecimentos da saúde pública, veterinária e ambiental, é o método eficaz para a prevenção de diversos fatores referentes à saúde, incluindo os surtos de doenças zoonóticas e pandemias. “Espero que sejam investidas novas abordagens interdisciplinares, um arcabouço legal e político baseado no tema, pesquisas científicas na área, que sejam fortalecidos os monitoramentos de vigilância em saúde intersetoriais e que haja incentivo em políticas públicas permanentes em educação humanitária e valores sociais”, idealiza.
Frente aos últimos acontecimentos observados em 2020 e nos últimos 20 anos, Correa afirma que o papel do médico-veterinário na sociedade está cada vez mais enraizado no contexto da Saúde Única, trabalhando de forma coesa e articulada com outros profissionais da saúde, como biomédicos, enfermeiros, dentistas, educadores físicos, biólogos, farmacêuticos, etc. “Logo, quão mais robusta e multidisciplinar forem as frentes de trabalho, melhores serão os resultados em prol da saúde pública e da saúde animal”, mensura.
Considerando o contexto geral, as perspectivas para 2021 esclarecerão um ponto, na visão do profissional: “A terceira lei de Newton far-se-á retórica toda vez que houver um desmatamento, a destruição de espécies ou o consumo de espécies animais sem os devidos cuidados higiênico-sanitários. E, quando isso acontecer, os médicos-veterinários sempre estarão prontos para promover saúde”, assegura.
Em sua opinião, precisamos enxergar o que o meio ambiente expõe frente aos nossos atos. “Um dia mais quente que o normal, um vento mais forte ou uma chuva, mesmo que pontual, mais intensa, podem ser presságios de que devemos manter atenção a uma série de processos. Os animais existem para nos ensinar muitas coisas e, dentre elas, o valor da vida num contexto onde, independente de classe social ou espécie, somos todos seres vivos de um mesmo planeta. E achar que a superioridade humana é soberana pode ser um erro fatal, como o ano de 2020 nos ensinou com essa pandemia de um vírus que proveio de um reservatório animal”, demonstra.
Para o profissional, quando a natureza dá seu alerta, há duas possibilidades a nós, humanos: ou aprendemos, ou sucumbimos. “Mesmo que, após mais de 100 anos da pandemia de gripe espanhola, não tenhamos aprendido muito sobre o comportamento pandêmico de determinadas doenças, tenho esperanças de que os aprendizados provindos de 2020 ficarão registrados para sempre. Desses, que a profissão Medicina Veterinária promove saúde, salva vidas e mantém o elo entre meio ambiente, saúde humana e saúde animal, equilíbrio fundamental para Saúde Única”, conclui.