Cláudia Guimarães, em casa
Hoje, chego aqui com um questionamento: quais as despesas atuais que você tem em sua casa? Água, energia, compra do mês, convênio de saúde, alimentação de seus pets, etc. Agora, outra questão: como você mantem essas contas em dia? Acredito que a resposta que mais se adequa seja com o salário que recebe por executar o seu trabalho. Por fim, a última pergunta deste texto: por que com os médicos-veterinários seria diferente?
Nesta reportagem, quero mostrar que os profissionais da Medicina Veterinária também possuem contas pessoais, além das despesas da clínica/hospital em que trabalham. Portanto, seu trabalho deve ser remunerado, assim como qualquer outro, de acordo com o que o profissional oferece, já que somente o amor pelos animais não paga boletos.
Como narrado pela médica-veterinária Núzia Brum, diversos cálculos são realizados para precificar os serviços veterinários, que envolvem custos de insumos, estrutura, funcionários, manutenção, tabelas de serviços terceirizados, comissão, expertise, tempo e investimentos pessoais em formação e aprimoramento. “Uma consulta pode se desdobrar em muitas horas de atendimento, troca de mensagens e acompanhamento que, definitivamente, não estão inclusos no valor e nem são cobrados, porém, continuam entrando na planilha de custo. Até o preço do aparelho celular e o pacote de dados que dispomos para ficar à disposição do cliente entra nesse planejamento”, expõe.
Consultas com especialistas têm valor superior queas realizadas por veterinários clínicos gerais(Foto: reprodução)
Conversamos, também, com a médica-veterinária, mestre e doutora em Nutrição de Cães e Gatos, na NaturaliaPet Consultoria, Luciana Domingues de Oliveira, que nos conta que faz parte do custo cobrado na consulta a formação profissional, incluindo a graduação e a pós-graduação que o veterinário possa ter feito. “Consultas com especialistas têm valor superior que as realizadas por veterinários clínicos gerais e pode existir diferenças de preço entre especialistas, dependendo da experiência do profissional e da especialidade em si. Já os custos com exames são formados pelo investimento no equipamento que realiza o exame, gasto de reagentes e materiais necessários, gasto com pessoal para realização do exame e impostos. Já os procedimentos veterinários têm o custo da equipe envolvida e do procedimento em si, que pode ser de diferentes complexidades de acordo com cada paciente. Lembrando sempre que a clínica veterinária tem custos fixos como água, luz, IPTU, equipe de limpeza, aluguel, recepção… enfim, tudo isso precisa ser considerado no custo de cada serviço oferecido pelo veterinário”, pontua e lembra que o Brasil possui uma alta carga tributária para medicamentos e equipamentos médicos/veterinários, que não pode ser ignorada no custo final repassado ao tutor.
Luciana lembra que, no Brasil, existe o Sistema Único de Saúde (SUS), que atende as necessidades médicas humanas, sem custo para as pessoas. Entretanto, não existe um “SUS animal” e muitos tutores acreditam, segundo ela, que os veterinários deveriam atender por amor. “Eles confundem nossa profissão com caridade e desvalorizam o veterinário por achar que temos obrigação de não cobrar ou dar descontos por consultas e procedimentos quando os tutores alegam não ter dinheiro ou quando são animais resgatados”, compartilha.
Sobre isso, Núzia observa que é incoerente uma pessoa considerar o pet como um filho – ou outro membro da família – e não querer gastar com a saúde do mesmo. “Possivelmente, isso está vinculado à ideia de posse/possuir, como uma mercadoria que, sem garantia de fábrica, precisa encontrar um culpado que sustente essa demanda e, muitas vezes, assume para si por mais amor e compaixão do que seus verdadeiros responsáveis. Aqui, no caso, os veterinários”, opina.
A veterinária ainda adiciona que, quando o cliente cobra do veterinário um atendimento mais barato, considerando seu amor pelos animais, certamente, essa atitude indica um profundo desconhecimento da importância desse profissional da área da saúde para a sociedade, sem deixar de permear a relação de empregabilidade do mercado de trabalho. “Temos um mercado inchado com profissionais cada vez menos capacitados pelo mercantilismo da educação superior. Colegas disputando migalhas de um setor que valoriza a estética antes da saúde e que não sofre regulação mínima de valores”, analisa.
Independentemente do custo, tratar do animalé um ato relacionado à guarda responsável(Foto: reprodução)
Amar é tratar. Vale lembrar que, independentemente do custo, tratar do animal é um ato relacionado à guarda responsável. Para Luciana, quando se adota (ou compra) uma animal, o tutor deve ter consciência que todos os custos relacionados à sua manutenção, como vacinas, alimentação, vermífugos, antipulgas, consultas regulares na clínica e tratamento veterinário, caso o animal fique doente, são de sua responsabilidade e não podem ser transferidos para outra pessoa. “Nem para o veterinário”, adiciona.
Para ela, os animais, assim como os humanos, devem ter acesso ao atendimento veterinário sempre que apresentem sintomas que indiquem algum problema de saúde. “E quanto antes o tutor leva o animal para atendimento, maiores as chances do sucesso do tratamento. A demora prejudica o animal e pode agravar sua saúde, fazendo com que o tutor gaste mais em tratamentos tardios (incluindo maior possibilidade de internação) e tenha as chances de sucesso de tratamento reduzidas, incluindo o aumento de risco de óbito do paciente”, alerta.
Já para Núzia, tratar qualquer indivíduo, independente do custo, é mais do que responsabilidade: tem a ver com humanidade. “Porém, em um País onde as pessoas, às vezes, não têm nem para si o acesso à saúde básica e depende de assistência do Governo, é possível compreender a dificuldade em implementar o mínimo, também, para os pets”, pondera.
No entanto, no que tange à importância de realizar exames em animais adoentados para diagnosticar e tratar o problema, ela costuma dizer a seus clientes que a Medicina Veterinária é igual ao seriado House: investigativa. “Meu paciente não fala, não colabora no exame clínico e, muitas das vezes, tem responsáveis igualmente pouco colaborativos. Os exames solicitados são em apoio a uma suspeita clínica na tentativa de melhor e mais rápido diagnosticar e, consequentemente, tratar com mais êxito o que acomete aquele paciente”, compartilha.
Uma de suas clientes, uma vez perguntou a Núzia por que ela não cobrava um valor mais “palatável” nas vacinas, pelo seu caráter social de sanidade coletiva. “Respondi que o laboratório precifica seu produto e não temos poder de barganha, pagamos o quanto pedem. Os governos levam sua bocada em todas as fases dessa venda, mas somente ao médico-veterinário é cobrado uma postura franciscana. Ainda que seu lucro seja mínimo, nunca é digno aos olhos dessas pessoas”, salienta e lembra que a Medicina Veterinária é uma relação de meios e não de fim: “Posso prestar o melhor serviço, mas isso não garante uma melhor resposta do paciente. Porém, paga-se pelo serviço e não pelo êxito. Serviço prestado, serviço cobrado”.
Cabe ao tutor procurar profissionais e clínicas queestão dentro de suas possibilidades econômicas(Foto: reprodução)
Valorização do veterinário. Na visão de Luciana, já existe uma parcela significativa de tutores que entende, acredita e respeita a profissão veterinária e essa parte da população está crescendo, felizmente. “Cada dia mais os pets são mais próximos aos tutores e considerados membros da família. Por isso, vemos mais tutores dispostos a gastar com melhores profissionais, melhores tratamentos, alimentos e medicamentos para garantir a longevidade do pet e com mais qualidade de vida. Mas também cabe à classe veterinária fazer sua parte: cobrando adequadamente por seus serviços e não ‘prostituindo’ a profissão para ceder aos apelos de tutores menos conscientes”, destaca.
Já Núzia diz que é um de seus sonhos a valorização do veterinário. “Mas não sei se estarei viva para ver acontecer. Tomara, quem sabe”, brinca e compara a Veterinária com a Medicina Humana: “Por omissão e conivência da classe, dos conselhos regulatórios, dos sindicatos e da midiática participação de figuras públicas, estabeleceu-se que um médico humano que cobra um alto valor de consulta é um sujeito competente e de sucesso. Por exemplo, ‘vou te indicar o fulano, ele é caro, mas é excelente’. Quem já não ouviu ou não disse essa frase para indicar um profissional médico para alguém? Na contramão dessa relação, está o veterinário que tem uma pecha que para ser bom tem que ser franciscano: ‘Leva ele no Dr. fulano, ele é bom e baratinho. Para bicho de rua, ele nem cobra consulta, é maravilhoso’. E ai do médico-veterinário que dirija um bom carro, viaje para fora e use roupas de marca. Certamente, é um mercenário que só quer tirar o seu dinheiro até o último centavo. Enquanto não tivermos um Conselho atuante no controle de valores mínimos praticados, as esferas políticas, realmente comprometidas com ações efetivas e não meramente eleitoreiras, seguiremos nessa mazela, nós e os animais”, argumenta.
Por sua vez, Luciana acredita que a valorização do veterinário deve partir de todas as pessoas, mesmo as que não têm animais, incluindo aquelas que acreditam que têm o direito de cobrar que os veterinários devam atender de graça. “Ao invés disso, as pessoas deveriam cobrar seus governantes para que eles abram hospitais veterinários públicos, para atender a população que não pode pagar pelo atendimento. Além disso, cabe ao tutor procurar profissionais e clínicas que estão dentro de suas possibilidades econômicas, pois, assim como em outros tipos de serviços, existe uma variação de valores muito grande de uma clínica para outra dentro de uma mesma cidade. Tutores e veterinários devem conversar abertamente sobre o que é necessário fazer ao animal e o quanto vai custar, para que ambos cheguem, juntos, a um consenso sobre o que poderá ser feito”, finaliza.