Cláudia Guimarães, em casa
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A eutanásia já é um procedimento difícil tanto aos tutores de cães e gatos, quanto aos veterinários que são designados para aplicar as técnicas farmacológicas que colocam um ponto final na vida de um animal em sofrimento. Mas esse ato causa uma angústia menor quando é a melhor opção a um paciente que padece por algum quadro irreversível. Agora, imagina eutanasiar animais saudáveis, apenas para controle populacional daqueles que foram capturados em situação de rua… Difícil de aceitar, não é?
Vamos relembrar que, no Brasil, desde meados dos anos 90, que as práticas da carrocinha (para capturar cães vadios/livres nas ruas), foram sendo deixadas para trás e o exercício da eutanásia pelos órgãos públicos passou a ser atitude pouco frequente até o ano 2000 para diminuir a população de cães e gatos nas ruas. O Estado brasileiro que foi um dos primeiros a legislar contra o controle das populações de cães e gatos, por meio da morte dos animais, foi São Paulo com a LEI Nº 12.916, de 16 de abril de 2008, originada do Projeto de lei nº 117/08, do Deputado Feliciano Filho.
Quem nos conta é a médica-veterinária e pesquisadora, especialista em clínica e cirurgia de cães e gatos, no Qualitas-SP, e mestre em Pesquisa em saúde com ênfase em políticas públicas com cães e gatos, Evelynne Hildegard Marques de Melo. De acordo com seus relatos, a quantidade de Estados brasileiros que legislou fixando que o controle populacional de cães e gatos não deve ser por meio de morte dos animais aumentou após a sansão da Lei federal Nº 13.426, de 30 de março de 2017, que “dispõe sobre a política de controle da natalidade de cães e gatos e dá outras providências”, e, atualmente, observa-se que, quase que na totalidade dos Estados brasileiros há a decisão com intenção legislativa de não praticar o método de controle populacional de cães e gatos por meio de morte dos animais.
“Contudo, é oportuno lembrar que a Lei federal, Lei federal Nº 13.426, de 30 de março de 2017, vetou orçamento para custeio de programas municipais de castração, fruto dos entendimentos controversos ainda dos ministérios e com isso o nascimento acelerado e numeroso destes animais ocorre fortemente no país em desequilíbrio com a posse responsável e com o alcance financeiro das pessoas para oferecer os ideais requeridos para o bem star animal”, pontua.
A consequência de não priorizar o controle de nascimento, na visão da profissional é a exposição destes animais à vulnerabilidade pelo fato de muitos deles estarem à margem dos controles zoosanitários, que evitam o adoecimento e evitariam, também, que culmine nas justificativas legais para eutanásia.
Em 20 de outubro, foi sancionado o Projeto de Lei que “dispõe sobre a proibição da eliminação de cães e gatos pelos órgãos de controle de zoonoses, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres; e dá outras providências”. “Para entender o que muda, precisamos lembrar a diferença entre os termos citados na Lei. Eliminação difere de eutanásia, tecnicamente”, destaca Evelynne, que já adianta que, no tocante a essa nova lei é, de certa forma, redundante, já que, desde 2012, há diretriz no Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) sobre eutanásia de cães e gatos e nenhum veterinário faz eutanásia de animais sem seguir as justificativas éticas.
Conceitos
Ela relembra que eutanásia é a indução da cessação da vida do animal, por meio de método tecnicamente aceitável e cientificamente comprovado, observando os princípios éticos definidos pelo CFMV’, segundo Art. 2º- RESOLUÇÃO Nº 1000, DE 11 DE MAIO DE 2012”. E também eutanásia é procedimento clínico de responsabilidade privativa do médico-veterinário, desde a década de 60 no Brasil, conferido pela Lei federal nº 5.517, de 23 de outubro de 1968 (CAP II; Art. 5°; “a”).
“Já a palavra eliminação, segundo a veterinária, pode ter várias interpretações e citá-la na lei é positivo por inibir algumas iniciativas de gestores públicos, que, vez ou outra, nos deparamos com debates na sociedade, baseados no senso comum, onde desejam realmente matar cães e gatos pelos variados incômodos causados nas cidades, incômodos estes consequência das ausências de gestões públicas”, explica.
Agora, o legislador fixou na ementa propositiva que a “eliminação” de cães e gatos está proibida, salvo os motivos que permitam eutanásia. “No corpo do referido texto legislativo, no Art. 2º -§1º e no Art. 3º, está fixado sobre quando deve ocorrer ‘eutanásia’ e ao ler, observamos que traz uma descrição semelhante ao que está definido desde 2012 pela RES. do CFMV n° 1000, de 11 de maio de 2012, o que, sobre eutanásia, a lei não inovou”, discorre.
Textos legislativos
Ao pé da letra, está dito na Lei federal: “eutanásia nos casos de males, doenças graves ou enfermidades infectocontagiosas incuráveis que coloquem em risco a saúde humana e a de outros animais.” (Art. 2°). Neste sentido, a RES. 1.000 do CFMV diz: Art. 3º “A eutanásia pode ser indicada nas situações em que: (I) – o bem-estar do animal estiver comprometido de forma irreversível, sendo um meio de eliminar a dor ou o sofrimento dos animais, os quais não podem ser controlados por meio de analgésicos, de sedativos ou de outros tratamentos; (II) – o animal constituir ameaça à saúde pública”, entre outros motivos”, cita.
Sobre as documentações para eutanásia, ao pé da letra, está dito na Lei federal: “A eutanásia será justificada por laudo do responsável técnico pelos órgãos e estabelecimentos referidos no caput deste artigo, precedido, quando for o caso, de exame laboratorial”, (no Art. 2º -§1º). E também, diz a Lei: “As entidades de proteção animal devem ter acesso irrestrito à documentação que comprove a legalidade da eutanásia”, (Art. 3º).
Neste sentido, sobre documentos comprobatórios, a RES. 1000 do CFMV diz: Art. 6º: “O médico-veterinário responsável pela supervisão e/ou execução da eutanásia deverá: (I) – possuir prontuário com os métodos e técnicas empregados, mantendo estas informações disponíveis para fiscalização pelos órgãos competentes”, entre outras diretrizes. “O que a nova lei federal muda é que amplia o acesso à documentação que comprove a legalidade da eutanásia de modo irrestrito abrangendo, além dos órgãos competentes [já citado na Res do CFMV] também às entidades de proteção animal”.
“Então, para o exercício dos médicos-veterinários, a Lei não inova, pois como observado desde 2012, mais precisamente, as diretrizes para eutanásias baseadas na senciência animal e nos preceitos éticos, já estavam consolidados na Resolução 1.000 do CFMV. E eutanásia é procedimento restrito aos médicos-veterinários que respondem unicamente ao seu código de ética profissional regido pelo CFMV e já segue Legislação federal desde a década de 60, onde lá está fixado o exercício privativo dos médicos-veterinários, sendo eutanásia inclusa nas atividades clinicas, a saber: Lei federal nº 5.517, de 23 de outubro de 1968 (CAP II; Art. 5°; “a”), não submissos a outras entidades (para práticas de eutanásia, que, por ventura, violem as diretrizes do CFMV) e, portanto, no Brasil, não realizada em animais saudáveis pelos veterinários há vários anos”, defende Evelynne.
Em contrapartida, a profissional frisa que a referida Lei mudará as posturas de alguns gestores em tramitar outras iniciativas no sentido de “eliminar” a vida de cães e gatos. “Isso é positivo”, avalia.
Eutanásia em animais saudáveis é inaceitável
Para Evelynne, baseado em pesquisas cientificas e literatura legislativa internacional, fazer a gestão das populações de cães e gatos em áreas urbanas é um dever ético de gestões públicas aliado aos médicos-veterinários, visto que os animais não são uma invenção do homem, são seres do meio ambiente, assim como nós, humanos. “Nossa missão deve ser desenvolver competências para uma relação equilibrada, pois os animais domésticos estão entre nós, nos centros urbanos, porque foram domesticados e sua presença desorganizada e, especificamente cães e gatos, é unicamente responsabilidade humana. Então, nos cabe planejar as soluções e que, neste caso, são totalmente dependentes de políticas públicas e o controle de nascimento deve ser prioridade, aliado à política de posse responsável e educação ambiental”, pondera.
A veterinária também salienta que os animais são seres como nós, sencientes e não podemos ignorar este fato, pois sabemos disso há muitos anos, estando consolidado desde os anos 80 em vários países. “Contudo, o legislativo no Brasil, em 2021, ainda debate o valor dessa característica nos animais”, lamenta.
Abrigar corretamente para não eutanasiar
A profissional observa na leitura do texto que a referida Lei não menciona sobre “melhorias” nos ambientes de acolhimento para cães e gatos. “O objetivo da nova lei é proibição da eliminação de cães e gatos nos ‘órgãos de controle de zoonoses, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres’, (Art 1°)”, indica.
Então, questionamos a profissional sobre a importância de melhorar os ambientes de acolhimento desses animais para a garantia do bem-estar. “Há locais que, normalmente, são abarrotados, muitas vezes, desses animais e o País não tem uma política pública definida sobre controle de quantos são esses ambientes, gestão e apoio operacional para este quesito e, na verdade, devem ser políticas públicas obrigatoriamente alinhadas, da seguinte forma: “1- não controle populacional por eliminação da vida + 2- controle populacional por castração cirúrgica e CED + 3- gestão de ambientes de acolhimento + 4- reconhecimento legal de cães e gatos comunitários + 5- educação ambiental”, argumenta.
Em sua opinião, o Brasil é fragmentado nas iniciativas de políticas públicas relativas às questões com cães e gatos, onde cada legislador lança uma ideia e, na verdade, elas devem estar coesas para uma mudança de realidade no País. “Mas, atualmente, temos já tramitando um PL sobre ambiente de acolhimento e reconhecimento de cães e gatos comunitários que é o PL FEDERAL N° 3446/2021 e, também, o PL para legalizar o método CED, que é o PL FEDERAL N° 2645/2021 (autor Deputado Marx Beltrão)”, indica.
Para Evelynne, devemos sempre lembrar que o desejo forte nos brasileiros pela organização da presença de cães e gatos necessita ter o entendimento dos legisladores e a consolidação legislativa para mudança de realidade. “E, as ideias, devem estar alinhas no sentido resolutivo e não mantenedores dos problemas. Devemos ter olhar preventivo com o olhar na Saúde Única”, encerra.
Entramos em contato com o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) para publicarmos um parecer, enquanto órgão de classe, sobre o tema e obtivemos a seguinte resposta:
“O médico-veterinário somente atua nos limites técnicos da profissão, utilizando a eutanásia quando estritamente recomendada ao caso concreto. A lei apenas formaliza e cria mecanismos de controle social para o que o médico-veterinário já faz em seu ofício, em total conformidade com a Resolução CFMV nº 1000/12”.