Cláudia Guimarães, em casa
claudia@ciasullieditores.com.br
com colaboração de Wellington Torres
A raiva é uma doença infecciosa de quadro neurológico que acomete os mamíferos. O agente causador é um vírus da família Rhabdoviridae e gênero Lyssavirus, que pode ser transmitido para outro mamífero pela mordida, arranhões, lambedura de mucosas ou feridas com saliva infectada. Essa explicação é dada pelo médico-veterinário, presidente da Comissão Nacional de Saúde Pública Veterinária, do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CNSPV/CFMV), Nélio de Morais.
Segundo ele, o quadro clínico da raiva se desenvolve quando células do sistema nervoso são infectadas e passam a produzir vírus da doença, deixando de realizar sua função original. A partir daí, dissemina-se para vários órgãos e glândulas salivares, sendo eliminado pela saliva das pessoas ou animais enfermos.
Explicando mais detalhadamente, De Morais conta que, quando um mamífero infectado com vírus da raiva, presente na cavidade bucal, morde outro mamífero suscetível ou, de alguma forma, coloca a saliva com vírus em contato com arranhadura ou solução de continuidade, ocorre o processo infeccioso que se inicia nos tecidos musculares e nervosos periféricos, posteriormente, atingindo o sistema nervoso central, quando se caracteriza a forma clínica da doença. “Daí em diante, há uma disseminação para outros órgãos do corpo, inclusive para as glândulas salivares, permitindo a manutenção dos vírus na natureza”, discorre.
O médico-veterinário virologista, Paulo Eduardo Brandão, adiciona que há casos de raiva em transplantados que receberam rins, pulmões, entre outros órgãos de doadores que morreram pela doença. “Em locais com alta concentração viral como, por exemplo, fábricas de vacina contra a raiva, a transmissão aerógena é possível, sendo-o também em locais onde se abriga grande quantidade de morcegos, visto que o vírus é também excretado por fezes e urina”, insere.
Levando isso em consideração, De Morais lista alguns cuidados essenciais para a prevenção da doença:
- Ter a guarda responsável de seus animais, evitando que seu cão ou gato agrida outra pessoa ou animal;
- Evitar contato com animais de companhia desconhecidos ou sem anuência do tutor;
- Evitar contato com animais de rua, uma vez que não se conhece a condição clínica deles;
- Evitar contato com animais silvestres, principalmente raposas, guaxinins, gambás, macacos/saguis ou morcegos;
- Evitar que seu cão ou gato tenha contato com animais silvestres, principalmente, morcegos caídos no chão;
O presidente da CNSPV/CFMV indica que, dependendo da variante viral, do animal transmissor e do local onde o vírus foi introduzido, pode haver quadros clínicos distintos. “Porém, sempre se observa mudança de comportamento. A sintomatologia, na maioria dos casos, demonstra-se pela forma furiosa, com angústia, inquietude, excitação e agressividade. Pode ocorrer, também, a forma com sinais de paralisia, que evolui para a morte devido ao comprometimento respiratório central. Em cães e gatos esse formato é mais frequente quando o vírus é transmitido por morcegos”, revela.
Mas vale lembrar que qualquer mudança de comportamento no pet, após contato com um animal desconhecido, associado a não vacinação periódica do animal, deve deixar o tutor atento. “Como animal vacinado nem sempre caracteriza um animal imunizado, é importante procurar uma unidade de saúde, caso haja algum acidente com cães e gatos ou animais silvestres potencialmente transmissores da raiva. Os sinais clínicos em cães e gatos mais comuns são a aversão ao ar, água, estímulo luminoso, alterações do latido (latido bitonal), dificuldade de deglutição, sialorreia, tendência a fugir de casa, excitação das vias geniturinárias, irritação no local da agressão e incoordenação motora”, enumera.
O veterinário virologista Brandão complementa a lista de sinais que podem indicar o problema: “Sabe-se, também, que a raiva pode intensificar um comportamento natural que cães e gatos podem ter individualmente, quando animais mais tímidos podem ter a timidez intensificada e, pelo contrário, aqueles naturalmente agressivos podem ficar mais agressivos ainda”.
Ele ainda destaca que os médicos-veterinários que receberem pacientes infectados com o vírus da raiva devem ser vacinados contra a doença e fazer monitoramento sorológico anual para saberem se precisam de reforço vacinal, além de usar EPIs como óculos, luvas e aventais descartáveis.
A raiva no Brasil e as estratégias do Governo
Sendo, então, a raiva uma doença de grande preocupação para a Saúde Pública, De Morais compartilha que o enfoque do Brasil é, essencialmente, a prevenção. “Campanhas anuais de vacinação animal são organizadas nos municípios, sendo que, muitas vezes, ao longo do ano, se realiza, também, em postos fixos, principalmente, e para a primovacinação. Quanto à prevenção e profilaxia contra a raiva humana (pré e pós-exposição), as orientações técnicas são elaboradas e atualizadas periodicamente e disponibilizadas nos locais de atendimento”, expõe.
De acordo com o profissional, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), o Brasil garante os imunobiológicos necessários (vacinas humanas e animais, e soros para os acidentes graves); os insumos estratégicos para a rede laboratorial de diagnóstico; assessoria aos estados e municípios; e provimento de recursos orçamentários financeiros para manutenção das ações de vigilância em saúde.
Por outro lado, Brandão acredita que a raiva é uma doença negligenciada dentre as mais negligenciadas, com 60 mil mortes humanas, anualmente, no mundo todo. “No Brasil, há grande deficiência na manutenção e na integração de laboratórios de diagnóstico para a vigilância da raiva, por uma histórica falta de investimento e priorização. A ausência de integração entre os serviços de Saúde Pública e aqueles de Saúde Animal também são um ponto frágil fundamental para a eficiência do controle da raiva no País. Ainda, em se tratando de Educação em Saúde, o Brasil carece, intensamente, de programas que levem à população informações sobre a raiva”, argumenta.
A dimensão continental e os seus variados biomas e situações ecológicas do Brasil também são lembrados por De Morais, possui uma imensa fauna, e grande parte das espécies tem potencial transmissor da raiva. “No nosso País, a raiva silvestre ocorre, sobretudo, em canídeos, como raposas (Cerdocyon ou Pseudalopex), guaxinins (Procyon) ou primatas não humanos (Callithrix). Todos com casos já registrados de transmissão aos humanos”, destaca.
Além desse cenário, há, ainda, um problema maior, apontado pelo veterinário: a transmissão da raiva para outros animais ou humanos por quirópteros (morcegos), tanto hematófagos, como insetívoros e frugívoros. “É uma ameaça clara e requer a instalação de processos permanentes de vigilância fortalecidos e de educação em saúde e ambiental, para que possamos neutralizar o risco e a vulnerabilidade”, frisa.
Mas, no geral, De Morais afirma que a raiva em animais de estimação de pequeno porte tem estado sob controle em todo o Brasil por serem vacinados periodicamente. “Em locais onde é comum adotar animais silvestres como animais de estimação, ou onde há presença de morcegos infectados, a possibilidade de transmissão de vírus e consequente ocorrência de casos clínicos é facilitada”, alerta.
Maior controle no País
Brandão sugere que investir em Educação em Saúde é um passo primordial para o controle da doença no Brasil. “Manter as campanhas públicas anuais de vacinação e cães e gatos com vacinas seguras mostrou-se um meio efetivo de controlar a doença que tem que ser continuado. Produzir e distribuir vacinas e soro antirrábico para seres humanos sob risco de raiva ainda depende de ampliação de investimentos na área. Montar e manter, com treinamento de pessoal, equipamentos e material de consumo, uma rede de laboratórios para diagnóstico e vigilância da raiva, é uma medida prioritária também”, observa
Ainda segundo Brandão, é preciso estimular pesquisas em desenvolvimentos de terapias para a raiva para os casos humanos em que não foi utilizada a profilaxia imunológica. “Altamente eficiente, é, também, um modo de salvar mais vidas humanas, visto que não se tem um tratamento efetivo para estes pacientes que, exceto por raríssimas exceções, acaba na morte destes”, propõe.
Nélio De Morais relembra que, no Brasil, o último caso de raiva humana transmitida por cão (variante antigênica AgV 1) ocorreu em 2015. O caso foi em Corumbá/MS, município que faz fronteira com a Bolívia, País que tem registrado constantes surtos de raiva em cães e seres humanos nos últimos anos. “Nesse sentido, pode-se afirmar que o Brasil tem obtido sucesso na sua estratégia de eliminação de casos de raiva por cães, focada nas campanhas anuais de vacinação de cães e gatos, vigilância de animais suspeitos, bloqueios vacinais de foco e profilaxia antirrábica pós-exposição. Os casos humanos nos últimos anos têm sido por variantes virais de morcego ou de canídeos silvestres, muitos deles acidentais, mas que poderiam ser evitados se tivessem recebido o atendimento antirrábico adequado. Por outro lado, alguns surtos de elevada magnitude e transcendência têm ocorrido, nas últimas décadas, em populações ribeirinhas da Região Amazônica expostas à espoliação de morcegos hematófagos infectados”, cita.
Diante de tal cenário, na visão do profissional, o Brasil tem mantido os esforços para se manter sem transmissão das variantes antigênica caninas (AgV 1 e AgV2). “Para tanto, a estratégia de vacinação em massa de cães gatos têm sido mantida em praticamente todo o território nacional, além dos bloqueios vacinais de foco, vigilância de animais suspeitos e a profilaxia antirrábica pós-exposição”, esclarece.
Uma atenção especial tem sido dada às áreas com maior risco de reintrodução dessas variantes: municípios que fazem fronteira com a Bolívia e o estado do Maranhão, onde ocorreram casos humanos transmitidos por cães (AgV2) até o ano de 2014, como ressalta o médico-veterinário. “Para essas localidades, planos de contingência foram elaborados e têm sido acompanhados pelas três esferas de governo do SUS. Nas áreas de fronteira com a Bolívia, o Brasil tem promovido, por meio de cooperação internacional com o Governo boliviano e o apoio da Organização Pan-Americana de Saúde, campanhas de vacinação de cães e gatos nos dois lados da fronteira. Nas referidas campanhas, o Governo brasileiro (União, estados e municípios fronteiriços) têm disponibilizado vacinas e parte da mão-de-obra”.
Vacina é, sempre, a melhor opção
Segundo De Morais, a vacina estimula a produção de anticorpos que neutralizam o vírus da raiva quando entra no organismo, seja do ser humano ou de outro animal. “Dessa forma, impede-se a maior produção de vírus por células, e sua disseminação para outras partes do corpo, evitando acometer a sistema nervoso central”, explana.
Quando questionado se poderia deixar um apelo aos profissionais da saúde e à comunidade neste Dia Contra a Raiva, De Morais responde: “Vacine, vacine, vacine! Nesse momento de pandemia, as campanhas estão sendo de estratégias diferentes em todo o Brasil. Para diminuir aglomeração, alguns Estados estão adotando campanha em municípios com notificação de casos nos últimos três anos e estratégias de vacinação em áreas de fronteira com tipo de vacinação casa a casa ou posto fixo”.
Brandão lembra que esta data foi eleita para homenagear Louis Pasteur, um dos pioneiros no desenvolvimento de vacinas contra a raiva, que morreu em 28 de setembro de 1895. “Isso nos dá a impressão de que a raiva é uma doença do passado, mas este é um grande equívoco: a raiva está sempre perto de nós, aproveitando-se de nossas falhas para nos surpreender”, finaliza.