Uma relação de intimidade, amor e companheirismo era possível ver no perfil de Luciene Candido, que postava vídeos ao lado de uma jaguatirica, batizada de Pituka, em seu sítio, localizado no município de Uruará, no sudoeste do Pará. O animal não era mantido preso, mas estava habituado a ficar com a mulher e com os pets da família. No entanto, na segunda-feira, dia 14 de abril, o animal foi levado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
A situação gerou polêmica nas redes sociais, onde algumas pessoas dizem que Lucilene deve lutar para ter o animal de volta, como se fosse um animal doméstico, enquanto outras defendem que o bem-estar da jaguatirica estava comprometido na residência, pelo fato dela ser tratada como um animal de estimação.
Conversamos com o biólogo e professor, doutor em Saúde Animal Silvestres pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e consultor Ambiental, Saulo Gonçalves Pereira, explica que o resgate realizado pelo Ibama está amparado pela Lei nº 9.605/98, conhecida como Lei de Crimes Ambientais. Apesar de ter sido publicada há 27 anos e carecer de atualizações, a legislação é clara em seus dispositivos. “É crime manter animal silvestre como pet. E, embora a jaguatirica não estivesse mantida em uma jaula ou corrente, a ação do Ibama foi não apenas correta, mas necessária do ponto de vista técnico, legal e ético”, destaca.

Segundo ele, o simples fato de um animal silvestre ser mantido em ambiente doméstico, sem autorização legal e sem estrutura adequada para suas necessidades fisiológicas, comportamentais e ecológicas, configura crime ambiental, conforme prevê a Lei de Crimes Ambientais.
Ele ainda acrescenta: “Ética significa reconhecer que o animal pertence à natureza, não à vida doméstica. Comparando, seria como pegar um brasileiro e levá-lo para um país com idioma, cultura e clima completamente diferentes, sem escolha ou preparo. Assim, por mais que ele pareça ‘adaptado’, jamais estará em seu verdadeiro lugar”.
Relação de animais selvagens com humanos
Pereira declara que animais selvagens, como a jaguatirica, não desenvolvem comportamentos naturais de animais de estimação. “Quando isso ocorre, geralmente, é resultado de um condicionamento artificial e prejudicial à sua saúde física e comportamental. A suposta docilidade observada é um reflexo da possível retirada precoce do animal da natureza, o que pode levar a distúrbios comportamentais e representar risco à segurança da família”, salienta.

O biólogo ainda discorre que, do ponto de vista biológico e evolutivo, alguns animais se aproximaram dos seres humanos ao longo do tempo por benefícios mútuos, como acesso a alimento, abrigo e proteção, o que contribuiu para o processo de domesticação de espécies como cães e gatos. “No caso da jaguatirica, a docilidade e os comportamentos que aparentam afeto podem estar mais relacionados à habituação do que à domesticação. Ressalto que a convivência forçada pode mascarar comportamentos naturais, afinal, ela não convive com seu hábito natural, trazendo riscos tanto para o animal quanto para os humanos, e, ainda, configura uma infração ambiental quando feita sem autorização legal”, declara.
Riscos físicos e emocionais
O profissional aponta que uma interação como essa representa riscos sérios à família, como ataques inesperados por parte do animal, que, mesmo aparentando docilidade, ainda é um bicho selvagem. “Além disso, a alimentação inadequada pode causar diversos problemas de saúde à jaguatirica, comprometendo seu bem-estar. Para os humanos, além do risco físico, há, também, o risco emocional ao desenvolver vínculos com um animal que, por lei, não pode ser mantido em cativeiro doméstico”, pontua.
O contato de um animal selvagem com animais domésticos, como cães e gatos, também pode gerar problemas. “Animais silvestres e domésticos podem transmitir doenças entre si, como é o caso da leishmaniose, além de sarna, entre outras doenças que afetam tanto humanos quanto animais. Além de conflitos físicos”, adiciona.
Mesmo que o animal tenha um temperamento dócil, sinais como comportamentos repetitivos, agitação constante, tentativas de fuga ou apatia podem indicar desconforto e estresse. “Tudo isso são formas de sofrimento pouco percebidas. A exposição desses animais nas redes sociais é extremamente prejudicial, pois pode incentivar outras pessoas a desejarem ter animais silvestres como ‘pets’, o que alimenta o tráfico ilegal e maus-tratos. A própria Lei de Crimes Ambientais proíbe que animais em geral e, também, os silvestres sejam utilizados em espetáculos ou expostos sem autorização. Animais também têm o direito de não serem exibidos ou transformados em entretenimento”, frisa o profissional.

Para encerrar, Saulo Pereira compartilha que a relação entre humanos e a natureza precisa deixar de ser baseada na ideia de superioridade. “Somos parte do mesmo ciclo e devemos respeitar o espaço de cada ser. O caso da jaguatirica Pituka não é isolado e práticas como rodeios e vaquejadas mostram que ainda há muito a avançar. Por outro lado, neste mês, houve um avanço importante: a criminalização mais rigorosa com multa para quem mantém animais acorrentados, o que reforça a necessidade de leis mais firmes e respeito à vida animal em todas as formas”, finaliza.
Em sua rede social, Luciene afirmou que o animal passou da liberdade para a prisão e classificou o caso como uma grande injustiça. Por sua vez, o Ibama informou que o animal recebia uma dieta inadequada para a espécie, o que pode causar sérios problemas de saúde; que os cães da propriedade apresentavam sinais de leishmaniose; e que a jaguatirica circulava livremente pela residência, inclusive, em locais onde eram guardados produtos tóxicos, como herbicidas, expondo-se a riscos à saúde.
Após o resgate, a jaguatirica foi encaminhada ao Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) do Ibama, onde será submetida a um processo de reabilitação antes de retornar ao seu habitat natural.
FAQ
Por que o Ibama interveio no caso da jaguatirica Pituka, mesmo ela não estando presa?
A intervenção do Ibama foi amparada pela Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), que proíbe a manutenção de animais silvestres como pets, independentemente de estarem presos ou livres dentro de casa. Mesmo que Pituka estivesse habituada ao convívio humano, isso não caracteriza uma condição adequada do ponto de vista ecológico, comportamental e legal.
Por que animais selvagens como a jaguatirica não devem ser tratados como pets, mesmo que aparentem docilidade?
A docilidade de animais silvestres mantidos em ambiente doméstico geralmente é fruto de habituação forçada ou de experiências traumáticas, como a retirada precoce do ambiente natural. Isso compromete o desenvolvimento de comportamentos típicos da espécie e pode gerar distúrbios sérios. A aparência de afeto e convivência tranquila, como no caso de Pituka, não significa que o animal esteja em bem-estar.
Quais são os riscos do convívio entre animais silvestres e domésticos, como cães e gatos?
A convivência entre animais de espécies tão distintas, especialmente quando um deles é silvestre, representa riscos físicos, sanitários e comportamentais. Do ponto de vista da saúde, há o risco de transmissão de zoonoses e outras enfermidades, como leishmaniose, sarna e viroses. Além disso, os comportamentos instintivos do animal selvagem podem causar ataques ou ferimentos graves.
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