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Especiais, Revistas, 2024

Não é uma questão de luta

É bastante comum o uso de termos ligados à guerra em casos de doenças oncológicas em pets, no entanto, a escolha dessas palavras pode impactar o tratamento e o bem-estar de animais e seus tutores
Por Equipe Cães&Gatos
Portrait of senior woman sitting outdoors in garden, holding pet dog.
Por Equipe Cães&Gatos

 “Na Oncologia, a comunicação também aborda a qualidade de vida, porém, o principal foco são os tratamentos que visam prolongar a vida do paciente, mesmo que isso envolva a realização de procedimentos complexos e que ainda não estão disponíveis na Medicina Veterinária, bem como utilização de doses mais altas e, consequentemente, com maiores efeitos colaterais”.

Os desafios desta questão

Diante desse cenário, há alguns obstáculos que precisam ser superados quando se pensa na utilização de termos ligados à guerra no contexto do tratamento oncológico veterinário. “Isso torna desafiador encontrar alternativas que sejam igualmente compreensíveis e impactantes para os tutores, já que muitos estão familiarizados com a linguagem bélica em relação ao câncer devido à sua prevalência na comunicação sobre a doença em humanos. Substituir o uso de termos que transmitam a importância e a urgência do tratamento oncológico, exige uma mudança na mentalidade tanto dos profissionais quanto dos tutores, o que pode ser um processo gradual, mas extremamente necessário.  Vale destacar que, apresentar informações de maneira equilibrada, incluindo riscos e benefícios de cada modalidade terapêutica, encorajando perguntas e discussões abertas, cria um ambiente que permite a expressão das preocupações e necessidades das famílias, promovendo decisões colaborativas e informadas”, conta.

Outro fator que não se pode esquecer são os impactos psicológicos do uso desses termos aos tutores. Segundo Mendes, são observados aumento da ansiedade e estresse emocional, já que termos como ‘luta’ e ‘combate’ podem fazer com que a situação pareça mais desesperadora e ameaçadora; sensação de culpa e fracasso, pois quando o tratamento é descrito como uma ‘batalha’ que o paciente deve ‘triunfar’, as famílias podem se sentir pressionadas para garantir o seu sucesso e, caso ocorra o avanço da doença mesmo diante de inúmeras abordagens terapêuticas, pode resultar em sensação de derrota, como se não tivessem feito o suficiente para ajudar o animal a ‘vencer a batalha’; exaustão emocional, já que a metáfora da guerra implica em uma luta contínua e intensa, levando os tutores a um estado de constante vigilância e preocupação que, a longo prazo, pode resultar em uma sensação de esgotamento; percepção negativa do prognóstico, já que o uso de termos bélicos na comunicação médica podem ser interpretado como um indicador de que a condição do animal é extremamente grave e que as chances de “sucesso” são limitadas, afetando a sua esperança e otimismo em relação ao tratamento; dificuldade da família em processar o óbito do paciente, sentindo que o pet “perdeu a batalha”, o que pode agravar a sua dor do luto.

Impacto no tratamento e  prognóstico 

De acordo com Mendes, o uso eficaz das técnicas e ferramentas de comunicação que se tem disponíveis pode melhorar a adesão dos tutores ao tratamento proposto e o bem-estar geral dos pacientes, quando as informações fornecidas são claras e compreensíveis. “Quando a nossa abordagem leva em consideração todos os conceitos de linguagem verbal, não verbal e paraverbal – que já foram abordados anteriormente – as famílias se sentem apoiadas e confiantes nas tomadas de decisões, o que aumenta a probabilidade de seguirem rigorosamente as recomendações médico-veterinárias. Uma comunicação aberta e honesta facilita o manejo das expectativas e prepara os tutores para enfrentar desafios, promovendo um ambiente colaborativo e positivo que beneficia tanto os pets quanto seus cuidadores”.

Entender as questões relacionadas ao prognósticos em animais com alguma doença oncológica é importante para o tutor e para o andamento do tratamento. Sobre a forma mais adequada de se comunicar o prognóstico das doenças oncológicas dos pets, aos seus tutores, segundo o oncologista, demanda especial atenção à linguagem que se é utilizada durante os atendimentos, pois é essencial que todas as informações acerca do que podemos esperar em relação ao comportamento biológico das neoplasias, sejam devidamente compreendidas por eles. “Nesse caso, devemos adotar uma comunicação clara e acessível com as famílias, evitando o uso de termos técnicos complexos e facilitando ao máximo o entendimento da mensagem que precisa ser transmitida, abordando o tema de forma empática e sensível; principalmente em pacientes com neoplasmas, que apresentam fatores prognósticos ruins, encorajando perguntas com o intuito de criar um ambiente aberto para discussões e o esclarecimento de dúvidas. Uma dica, é a criação de materiais de apoio adicionais que podem ser úteis para revisão posterior em suas residências, sempre que possível”, explica.

Há soluções?

Segundo Mendes, existem alternativas mais adequadas aos termos beligerantes ao comunicar sobre o diagnóstico e tratamento do câncer em animais de estimação. “Uma abordagem empática e compassiva na escolha das palavras pode fazer uma grande diferença na percepção dos tutores durante o tratamento oncológico de seus pets, podendo oferecer conforto e reduzindo o medo diante do diagnóstico. Nesse contexto, podemos lançar mão de termos que sugerem apoio e carinho, como ‘gestão da doença’ e ‘equipe de cuidados’, gerando uma sensação de segurança e acolhimento. Também, podemos utilizar a metáfora da ‘jornada’ ou ‘caminho’, enfatizando a experiência da doença como parte de uma trajetória mais ampla ao invés de colocar o paciente como um guerreiro que deve lutar bravamente contra um inimigo que cresce dentro de seu corpo, deslocando o foco de uma batalha física para o processo individual de enfrentamento e adaptação diante de um novo cenário que faça sentido para cada família. Adotar esse termo permite que a narrativa de cada paciente siga seu próprio caminho de forma única, ajustando-se e respondendo a novas direções, evitando o conceito de ‘falha’ no tratamento”, aponta.

No que diz respeito à educação dos profissionais de Medicina Veterinária, Mendes comenta que, em sua visão, o ponto de partida para o uso de técnicas de comunicação adequada sobre todos os aspectos que tangem as doenças oncológicas na Medicina Veterinária, é o investimento em formação e capacitação contínua por meio de cursos, workshops e inclusão de módulos de comunicação empática, de notícias difíceis em saúde, de más notícias e acolhimento ao luto, no currículo acadêmico, ministrados por especialistas em Comunicação e Psicologia, com simulações de consultas, estudos de caso e feedback construtivo; desenvolvimento de habilidades interpessoais em treinamentos regulares de habilidades sociais como escuta ativa e validação emocional, role-playing em ambiente controlado e programas de mentoria; formulação de guias e protocolos de comunicação que incluam exemplos de linguagem sensível e recomendações sobre como abordar diferentes situações em um atendimento oncológico, check-lists, aplicativos de treinamento e plataformas online para discussões e trocas de experiência entre médicos-veterinários; coletar feedbacks dos tutores que podem ser utilizados para identificar áreas de melhoria na comunicação com os profissionais responsáveis pela condução do caso de seus pets e envolvê-los ativamente nas discussões sobre o diagnóstico, tratamento e prognóstico, garantindo que todas as suas dúvidas serão sanadas; incentivar a implementação de programas de apoio psicológico, atividades de redução de estresse e medidas de autocuidado e bem-estar dos médicos-veterinários, para que estejam preparados para lidar com conversas difíceis”.

Infelizmente, indica Mendes, a forma como se comunica com as famílias de pets com doença oncológica tem melhorado a passos muito lentos ao longo dos últimos anos e, embora há um aumento da procura de estudantes e profissionais da área de Oncologia Veterinária, por capacitação técnica e educação continuada por meio de cursos livres ou de pós-graduação, são pouquíssimas as instituições brasileiras que incluem ao menos uma disciplina que aborda técnicas básicas de comunicação em sua grade curricular.

“Quando o assunto é comunicação de más notícias, o cenário é ainda mais assustador e, embora existam diversos protocolos desenvolvidos para auxiliar e treinar os profissionais de saúde para melhorar e tornar sua comunicação mais efetiva e menos danosa aos tutores, o mais difundido entre eles é o SPIKES, criado como uma estratégia e não como roteiro, destacando as principais características de uma entrevista sobre más notícias. Entre outros protocolos existentes, o BREAKS apresenta-se como uma estratégia fácil e sistemática; o mnemônico ABCDE e o EMPATHY, utilizado pelos profissionais que trabalham nas áreas da saúde humana, contendo componentes-chave da avaliação de comportamentos não-verbais. Lembrando que todas essas ferramentas precisam sofrer adaptações quando utilizados na Medicina Veterinária, tendo em mente que a tomada de decisões é de responsabilidade das famílias e não dos pacientes, na nossa área”, detalha.

Por fim, ele aponta como o médico-veterinário pode contribuir para promover uma mudança cultural em relação ao uso de linguagem sensível no tratamento oncológico veterinário. “Nós, médicos-veterinários, podemos e devemos contribuir ativamente para que haja uma mudança cultural em relação ao uso de metáforas bélicas na terapia contra o câncer dos pacientes, substituindo o uso de termos ligados à guerra por uma linguagem mais cuidadosa e empática em cada um de nossos atendimentos. Além disso, é fundamental esclarecer aos tutores que essa não é a maneira mais adequada para se referirem ao tratamento oncológico”, finaliza.

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