Por quatro décadas, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), principal agência de saúde pública dos Estados Unidos, investigou os suicídios entre médicos-veterinários. A conclusão foi que os veterinários homens tinham o dobro de chances de se matar do que a população em geral e as mulheres, 3,5 vezes.
A pesquisa com 11.629 veterinários durou de 1979 a 2015 e foi publicada em 2019. No período do estudo, cerca de 400 veterinários se suicidaram. Estudos de diversos países têm mostrado que a ocorrência de suicídios entre veterinários é maior do que na população geral. Os autores da pesquisa do CDC afirmaram que a ansiedade e a depressão se mostraram rotineiras entre os profissionais da área.
Outra pesquisa de 2019 apontou que as causas poderiam ser, entre outros fatores, o acesso facilitado a um medicamento usado para a eutanásia dos animais.
Já na Austrália, um estudo divulgado em 2022 pela ONG Love Your Pet, Love Your Vet mostrou que a taxa de suicídio entre veterinários era quatro vezes mais alta do que a média no país e revelou que 78% dos donos dos animais, também chamados de tutores, não sabiam disso.
A pesquisa VetsSurvey de 2021 concluiu que Portugal é o país do mundo com o maior nível de estresse na área veterinária, atingindo cerca de 87% dos profissionais. Argentina (79%), Brasil (74%), Estados Unidos (71%) e Reino Unido (70%) vieram em seguida. A média mundial ficou em 65%.
No Brasil, a psicóloga Bianca Stevanin Gresele estudou, durante seu doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), os fatores de risco para a saúde mental de veterinários clínicos que atendem e fazem cirurgias em pequenos animais, como cães e gatos.
Cerca de 43% dos formados trabalha nesta área da veterinária, segundo o relatório Demografia da Medicina Veterinária do Brasil 2022. Segundo a psicóloga, os três principais fatores de estresse na profissão são o desgaste emocional com atendimentos, lidar com tutores emocionalmente abalados e equilibrar a vida pessoal com a profissional.
Em sua tese de doutorado, defendida neste ano, Gresele constatou que os profissionais com maiores taxas de síndrome de burnout, fadiga por compaixão e ideação suicida são mulheres, jovens e sem especialização. As mulheres são maioria na profissão, 55,7%.
A fadiga por compaixão é uma síndrome que afeta profissionais que lidam com o sofrimento dos outros e sofrem com exaustão física e emocional; falta de energia e entusiasmo; distanciamento da equipe, dos amigos, da família e dos pacientes; desinteresse; e depressão.
O Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) reconhece que faltam mais estudos locais a respeito, mas que sobram relatos de casos. “Temos sabido dos suicídios e das tentativas, escutado sobre as ideações suicidas e anotado as queixas de burnout, principalmente do pessoal de clínica”, afirma a veterinária e psicóloga Ingrid Bueno Atayde, presidente da Comissão de Atenção à Saúde Mental dos Médicos Veterinários e do Zootecnista no CFMV.
Remuneração defasada
No Brasil, há cerca de 265 mil veterinários registrados no CFMV. O país tem o maior número de faculdades de veterinária no mundo. São 515 ativas atualmente, públicas e privadas, de acordo o Ministério da Educação (MEC). Número bem acima dos Estados Unidos e da China, os países com mais animais de estimação no mundo, com 33 e 100 faculdades de veterinária, respectivamente.
Por ano, uma média de 11 mil novos veterinários chegam ao mercado brasileiro. Mas esses profissionais dizem que condições de trabalho que consideram precárias afetam sua saúde mental e a continuidade na carreira. Um dos problemas que os veterinários apontam é a remuneração. A profissão não tem um piso salarial. O valor médio pago por um plantão veterinário de 12 horas no Brasil é de R$ 150, segundo o movimento Lute Vet (Movimento Nacional de Médicos Veterinários na Luta por Direitos Trabalhistas). Isso é quase o mesmo que a maioria dos médicos generalistas humanos ganham em uma hora em um plantão.
Grazielli Messias, uma das fundadoras do Lute Vet, afirma que a maioria dos profissionais trabalha sem contrato, em jornadas longas que não raro ultrapassam as 12 horas ou com desvio de função, atendendo na recepção ou fazendo limpeza nas clínicas, sem receber a mais por isso. “É tudo acertado verbalmente e, de uma hora para outra, o veterinário é avisado de que não precisa mais comparecer ao trabalho no dia seguinte”, diz Ingrid Bueno Atayde, do CFMV.
Cerca de 46,6% dos veterinários declaram cumprir jornadas superiores a 40 horas semanais, segundo a Demografia da Medicina Veterinária do Brasil 2022. A maioria (52,7%) trabalha como autônomo, e muitos não denunciam abusos por medo de perder trabalho ou de ficarem “queimados” no mercado, segundo os profissionais ouvidos pela reportagem.
Profissionais dizem se sentir pressionados também pela reação dos clientes nas redes sociais e pelo aumento dos casos de processo. Segundo o CFMV, muitos vêm pedindo medidas protetivas contra pessoas que já os agrediram ou que os perseguem.
Pressão por lucro, machismo e maus-tratos
A veterinária paulistana Débora Pimenta, de 33 anos, diz que uma das questões que a desgastaram até o limite de um burnout foi a pressão de patrões por maior lucro. Em mais de um local em que trabalhou como clínica, Débora conta que foi levada a oferecer procedimentos e medicamentos que ela considerava desnecessários, em troca de comissões. “Em certos lugares, a gente não trabalha como veterinária, mas como vendedora. Eu não estudei veterinária para ser vendedora”, diz Débora. Outra frustração sua foi ver alguns tutores priorizando sua aparência em detrimento da saúde.
“Tem animais que estão desmaiando durante o banho por algum problema de saúde, mas o importante é o bicho estar limpo. Pagam pelo banho, pela tosa, mas não pela consulta com o veterinário”, afirma Débora. “Os animais de pet shop são vistos algumas vezes mais como um objeto.” Ela trabalha como cirurgiã e quer abrir uma creche para cachorros. Voltar a trabalhar em hospital, clínica ou pet shop está fora de cogitação.
A patologista Claudia Momo, professora da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, acompanhou de perto muitas situações de maus-tratos. Ela e sua equipe na faculdade examinam corpos de animais que são encaminhados pelas polícias, por outras autoridades e pelo Hospital Veterinário da USP. Junto com peritos da Universidade Estadual Paulista (Unesp), eles fizeram parte da equipe que necropsiou búfalas encontradas em situação de abandono no interior de São Paulo em novembro de 2021.
O peso da eutanásia
Um estudo de pesquisadores da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) publicado em 2023 mostrou que a prática da eutanásia animal tem um impacto negativo na saúde mental dos veterinários brasileiros. A presença de sentimentos negativos decorrentes da prática é frequente, assim como a falta de preparo emocional para executá-la.
Os médicos-veterinários no Brasil, afirmam os pesquisadores, não vêm sendo preparados durante a graduação para lidar com a morte dos pacientes, nem com as implicações morais e éticas que envolvem o assunto. Não é somente a veterinária clínica que precisa lidar com a prática da eutanásia em volume.
“Veterinários que trabalham em biotérios [criadouros de animais para experimentos científicos] ou em serviços da zoonose, em que por vezes se preconiza o abate sanitário, não raro lidam com eutanásias cruentas”, lembra Ingrid Atayde.
A organização Not More One Vet (“Nem mais um veterinário”) propõe quebrar o estigma da saúde mental entre os veterinários. Ela foi criada em 2014 após o suicídio de Sophia Yin, uma renomada veterinária americana. Impactada por sua morte repentina, a veterinária Nicole McArthur criou um grupo online para discutir “o bom, o ruim e o feio de ser veterinário”.
Os primeiros participantes foram estimulados a chamar mais profissionais da área, e, hoje, o grupo tem quase 31 mil inscritos no Facebook. Trata-se, diz a descrição do grupo, de um espaço seguro para veterinários discutirem sentimentos sobre o trabalho e a vida e para se apoiarem: “É um lugar onde você aprende que definitivamente não está sozinho”.
Gigi Tsontos, diretora executiva da organização, afirma que a Not More One Vet conta com 400 voluntários, alguns do Brasil. Há uma equipe contratada também. A organização oferece grupos de apoio e sessões individuais para veterinários, seminários online sobre saúde mental e parcerias com produções culturais, como o documentário The Cost of Caring. Lançado em agosto nos Estados Unidos e ainda não exibido no Brasil, o filme aborda o “chocante e devastador” aumento nas taxas de suicídio entre veterinários americanos.
Fonte: BBC Brasil, adaptado pela Equipe Cães e Gatos.
FAQ
Quais os principais fatores que afetam o psicológico dos veterinários?
A remuneração defasada, a pressão por venda de produtos, grande quantidade de horas trabalhadas e a realização da eutanásia são alguns dos fatores que mais afetam o psicológico dos profissionais.
Qual o perfil dos profissionais mais afetados pelo estresse no trabalho?
Um pesquisa constatou que os profissionais com maiores taxas de síndrome de burnout, fadiga por compaixão e ideação suicida são mulheres, jovens e sem especialização.
Como os profissionais podem aliviar a pressão psicológica do trabalho?
Buscar grupos de apoio e sessões individuais com psicólogos e seminários online sobre saúde mental são algumas das opções para lutar contra o estresse causado pela profissão.
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